É claro que a liberdade não caracteriza todas as formas de relacionamento humano nem todos os tipos de comunidade. Onde os homens vivem em conjunto sem formarem um corpo político-como acontece por exemplo nas sociedades tribais ou na privacidade do lar-os factores que regem a sua acção e a sua conduta são, não a liberdade, mas as necessidades da vida e as preocupações relacionadas com a sua preservação. Além disso, onde o mundo-feito-pelo- homem não se converte em cenário para o discurso e para a acção-como nas comunidades governadas de modo despótico, que expulsam os seus súbditos Para a estreiteza do lar e assim impedem a formação de uma esfera pública politicamente garantida, a liberdade fica sem espaço onde emergir. Claro que pode sempre habitar no coração dos homens como desejo ou vontade ou esperança ou anseio; mas o coração humano, como todos sabemos, é um local bastante escuro, e o que quer que aconteça na sua obscuridade dificilmente pode ser considerado um facto demonstrável. A liberdade enquanto facto demonstrável coincide com a política e as duas estão intimamente relacionadas.
Contudo, e à luz da nossa experiência actual, é precisamente esta coincidência entre política e liberdade que não podemos tomar como garantida.A ascensão do totalitarismo, a sua reivindicação de ter subordinado todas as esferas da vida às exigências da política e a sua permanente insistência em não reconhecer direitos civis, principalmente o direito ao privado e ao alheamento da política leva-nos a pôr em dúvida não só essa coincidência entre política e liberdade, mas até à própria compatibilidade de ambas. Tendo visto como a liberdade desapareceu sempre que as chamadas considerações políticas se impuseram a tudo o resto, nós hoje tendemos a crer que a liberdade começa onde a política acaba. No fim de contas não estará certo aquele credo liberal que afirma«Quanto menos política, mais liberdade?» Não é verdade que quanto menor for o espaço ocupado pela política maior é o campo deixado à liberdade? Pois não teremos nós razão em medir a extensão da liberdade em cada comunidade pelo espaço que esta concede a actividades aparentemente não-políticas, como o livre empreendimento económico, a liberdade religiosa, de ensino, ou no âmbito da actividade intelectual ou cultural? Não será verdade, como todos de algum modo acreditamos, que a política só é compativel com a liberdade porque, e na medida em que, garante a possibilidade de nos libertarmos da política? Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro.
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