sexta-feira, 7 de março de 2008

Percursos da liberdade

Esta definição de liberdade política como potencial libertação face à política não nos foi incutida só pelas experiências porque aparentemente passamos; ela desempenhou também um grande papel na história da teoria política. Sem ir mais atrás, basta-nos pensar nos pensadores políticos dos séculos XVII e XVIII que, frequentes vezes, identificaram simplesmente a liberdade política com a segurança. Para estes, o mais alto propósito da política « a finalidade do governo» era garantir a segurança; e a segurança, por sua vez, tornava possível a liberdade, e a palavra «liberdade» designava a quintessência de um leque de actividades que ocorriam fora da esfera política. Mesmo Montesquieu, embora tivesse uma concepção da política, não apenas diferente, mas mais elevada do que a de Hobbes ou de Espinosa, chegava, por vezes, a identificar a lberdade política com a segurança. A ascensão das ciências políticas e sociais nos séculos XIX e XX alargou ainda mais o fosso entre a liberdade e a política: pois o governo, que desde o início da Idade Moderna havia sido identificado com o domínio total do político, era agora considerado como o protector não propriamente da liberdade mas do processo vital, dos interesses da sociedade e dos seus sindivíduos. A segurança continuava a ser o critério decisivo, não a segurança do indivíduo contra a «morte violenta» como em Hobbes [para quem a condição de toda a liberdade consistia em estar livre do medo], mas uma segurança que devia assegurar que o processo vital da sociedade como um todo se desenvolvesse sem perturbaçõs. Este processo vital não é limitado pela liberdade, seguindo ao invés uma necessidade que lhe é imanente; e só se pode chamar livre no sentido em que dizemos de um rio que ele flui livremente. Aqui a liberdade não representa sequer o objectivo não-político da política, mas um fenómeno marginal-que de certo modo marca o limite que o governo não pode ultrapassar a menos que estejam em causa a própria vida e os seus interesses e necessidades imediatas.

Assim, para além de nós, que temos motivos próprios para desconfiar da política no que respeita à liberdade, também toda a Idade Moderna divorciou a política da liberdade. Eu podia até recuar mais ainda no passado e evocar velhas memórias e tradições. O secular conceito de liberdade anterior à Idade Moderna insistia em separar a liberdade dos súbditos de qualquer participação directa na governação; « a liberdade e a libertação» do povo «consiste em ser governado por leis», pelas quais a sua vida e os seus bens possam melhor pertencer-lhe; e não em participar do governo, que é coisa fora da sua competência-como Carlos I resumiu no discurso que pronunciou no patíbulo Não foi por um desejo de liberdade que o povo exigiu ter parte na governação ou ser admitido na esfera política, mas por desconfiança em relação a esses que tinham poder sobre a sua vida e os seus bens. De resto a concepção cristã de liberdade política nasceu da suspeita e da hostilidade dos primeiros cristãos em relação à esfera política enquanto tal e de cujas preocupações desejavam ser isentados a fim de serem livres. E esta libertação cristã em prol da salvação, foi precedida, como já sabemos, da abstenção da política defendida pelos filósofos como pré-requisito de um modo de vida mais livre e mais alto--a vida contemplativa. Hannah Arendt, Entre O Passado e O Futuro.

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