segunda-feira, 31 de março de 2008

Entre a tradição e a inovação?

  • "O que tem de ser demonstrado para ser acreditado não vale grande coisa" Nietzsche

  • "Em toda a parte onde a autoridade ainda é de bom tom, onde não se discute, mas se ordena, o dialéctico é uma espécie de polichinelo" Nietzsche

  • "Tudo o que é bom é herança, o que não é herdado é imperfeito, não é mais do que um começo" Nietzsche

domingo, 30 de março de 2008

libertas-vitalis.blogspot.com: O alto valor da educação?

libertas-vitalis.blogspot.com: O alto valor da educação?

duas concepções de liberdade: a liberal e a republicana?

RELATIVIDADE. ESCHER

«Em oposição a esta primeira concepção de liberdade, intrinsecamente liberal [no sentido em que é inseparável da teoria dos limites do Estado], Isaiah Berlin evoca, no seu famoso ensaio, outra concepção que discute e recusa, cuja teoria se preocuparia menos com a extensão do poder reconhecido a cada pessoa do que com a origem deste poder de agir que é o seu. Com efeito, para a teoria da liberdade positiva, a questão crucial já não reside em saber de que somos senhores mas antes: quem é o senhor? Somos nós próprios ou outrém?Nesta perspectiva, os cidadãos de um Estado são livres se são eles próprios que governam, directa ou, as mais das vezes indirectamente: desta vez, já não é a independência que define a liberdade, mas a autonomia-o facto de a pessoa estar na origem das leis que reconhece, e já não a latitude da acção. Aquilo que Taylor, no seu texto sobre liberdade negativa, atribui a Rousseau e a Marx e, mais geralmente «aos que pensam que a liberdade reside, pelo menos em parte, no controlo colectivo que podemos exercer sobre a vida em comum». Mais concretamente: a liberdade, nesta óptica, é concebida segundo um conteúdo específico ou determinado, que consiste o em querer isto ou aquilo indiferentemente(desde que não seja proibido), mas em visar certas finalidades em vez de outras-finalidades essas que, supostamente, permitirão realizar melhor em nós a humanidade do que o poderia fazer a mera satisfação dos nossos desejos mais imediatos. É neste sentido que, em conformidade com esta segunda noção, a liberdade pode ser considerada «positiva», porquanto consiste, não apenas na liberdade de entraves( tendo em vista um qualquer objectivo), mas na realização de fins expressamente( e, logo, positivamente) visados e que definem um ideal pleno de conteúdo.



Importa acrescentar que, segundo Berlin, essas duas concepções de liberdade implicam valores profundamente antagónicos-a ponto de constiuirem, para ele , o exemplo dessas questões normativas finais às quais é impossível, no seu entender e segundo uma perspectiva bastante próxima da temática weberiana da «guerra dos deuses», dar uma única resposta, que exclua todas as outras respostas possíveis e que supere radicalmente os conflitos das posições em presença. Dito isto, no conjunto das respostas inconciliáveis susceptíveis de serem dadas à questão da liberdade[no caso concreto as duas respostas] e entre as quais - no entender de Berlin e precisamente devido à sua posição sobre os conflitos de valores- estamos condenados a escolher, ele não hesita em optar claramente pela concepção da liberdade como liberdade negativa.» História da Filosofia Política, vol ४, Direcção de Alain Renault

sábado, 29 de março de 2008

O debate acerca da liberdade dos Modernos.

«Com efeito, o que caracteriza segundo Habermas o conceito republicano de «política» é uma certa complexificação da própria noção de liberdade; Para os republicanos, a liberdades não se reduzem aos direitos garantidos pelo Estado, em nome dos quais os individuos podem dispor livremente da sua pessoa, da sua vida e dos seus bens, (o que na nossa tradição, chamamos de direioss-liberdades), mas integram também « a prática da autodeterminação de cidadãos que aspiram ao bem comum e que se consideram membros livres e iguais de uma comunidade autogerida». De facto, é esta complexificação da noção de liberdade política que toda a corrente republicana contemporânea tenta exprimir ao retomar a distinção que Habermas menciona expressamente, remetendo Para C. Taylor, entre liberdades negativas e liberdades positivas.

Com efeito, esta remissão para Taylor é mais enganosa do que realmente esclarecedora: no seu texto sobre a liberdade negativa, o próprio Taylor parte, de facto, da verdadeira referência fundamental-o ensaio de Isaiah Berlin, publicado em 1958 e intitulado« Duas concepções de Liberdade»

O que Berlin explica neste ensaio célebre é , no essencial, que a ideia de liberdade negativa, que corresponde à concepção liberal da liberdade[defendida resolutamente por Berlin], responde a uma questão sobre a extensão do poder a que estão submetidos os membros de uma sociedade: com efeito, até que ponto devemos nós, quando coexistimos no seio de uma sociedade regida por um governo civil (no sentido de Locke), ser governados? Por outras palavras, de que possibilidades de acção sem entraves (neste sentido: livres) dispomos? Na perspectiva que corresponde à concepção da liberdade política como liberdade negativa, a liberdade de um cidadão seria, por conseguinte, função da extensão da área de acção [a que Fichte, no seu tempo chamava«esfera da liberdade»] em que pode ter a certeza de não ser entravado pela intervenção do Estado ou dos seus concidadãos.

A ideia de liberdade negativa - que intervém então para responder à pergunta: « de que coisas sou senhor» na minha existência social?-consiste em afirmar que os indivíduos são tanto mais livres quanto maior for o número de aspectos da sua existência que dependem exclusivamente da sua escolha e decisão pessoais. É esta ideia que Taylor retoma no seu artigo, afirmando que as teorias liberais, que priveligiam a liberdade negativa, « desejam definir a liberdade exclusivamente em termos de independência do indivíduo relativamente a qualquer interferência por parte dos outros, quer se trate de governos, de corporações ou pessoas individuais»: nesta concepção, a liberdade poderá ser chamada negativa, dado não consistir de modo algum em fazer isto ou aquilo, isto é em fazer isto e não aquilo, em viver de certa maneira e não de outra--logo, não é definida positivamente por um tipo de acção, mas apenas de forma negativa, pela proibição de proibir, isto é, pela exclusão da interferência intencional de outrém(individual ou colectivo) na minha esfera de acção; resumindo, uma vez prounciada esta exclusão, posso fazer que quiser, e o conteúdo da minha liberdade , pois que só é definido negativamente(ou por exclusão) permanece inteiramente indeterminado.» História da Filosofia Política, vol 4, Direcção de Alain Renault.

sexta-feira, 28 de março de 2008

libertas-vitalis.blogspot.com: A lucidez trágica à bela ingenuidade.

libertas-vitalis.blogspot.com: A lucidez trágica à bela ingenuidade.

Catedral de Burgos


A catedral de Burgos tem trinta metros de altura
e as pupilas dos meus olhos dois milímetros de abertura

Olha a catedral de Burgos com trinta metros de altura!

António Gedeão, OBRA POÉTICA.

A ruptura com a tradição?

A dominação totalitária como facto estabelecido, que no seu carácter inédito não pode ser cocmpreendida pelas categorias habituais do pensamento político, e cujos«crimes» não podem ser julgados com os critérios morais tradicionais nem punidos dentro do quadro legal da nossa civilização, representou uma ruptura na continuidade da história do Ocidente. A ruptura da nossa tradição é hoje um facto consumado. Não resultou da escolha deliberada de ninguém nem é susceptível de ser alterada a posteriori.

As tentativas dos grandes pensadores pós-hegelianos de se afastarem dos padrões do pensamento que haviam dominado o Ocidente durante mais de dois mil anos podem ter pressagiado este acontecimento, contribuiram, por certo, para o esclarecer, mas não o ocasionaram. O próprio acontecimento marca a linha divisória entre a Idade Moderna que nasce com as ciências naturais no séc.XVII, atingiu o seu apogeu político com as revoluções do séc. XVIII e desdobrou as suas implicações gerais a partir da Revolução Industrial do séc XIX- e o mundo do séc. XX, que teve origem no encadeamento de catástrofes ocasionadas pela Primeira grande Guerra Mundial. Atribuir aos pensadores da Época Moderna, em especial aos que no século XIX se revoltaram contra a tradição, a responsabilidade pela estrutura e pelas condições do séc. XX é injusto, e mais do que isso, é perigoso. As implicações da dominação totalitária tal como esta se verificou excedem em muito as ideias mais radicais ou mais aventurosas de qualquer desses grandes pensadores, cuja grandeza assenta no facto de terem visto o seu mundo invadido por problemas e perplexidades inteiramente novas, com as quais a nossa tradição de pensamento era incapaz de lidar. Neste sentido, o seu próprio afastamento em relação à tradição por muito enfaticamente que eles o hajam proclamado[ como crianças que assobiam cada vez mais quando verificam terem-se perdido no escuro], não resultou de uma escolha deliberada por parte desses pensadores. Aquilo que os atemorizava na escuridão era o seu silêncio, não a ruptura com a tradição. Esta ruptura, quando na verdade se deu, dissipou a escuridão de tal modo que já mal conseguimos prestar atenção ao estilo retumbante, «patético» dos seus escritos. Mas o trovão da explosão final abafou também o ominoso silêncio anterior, esse silêncio que ainda nos responde sempre que nos atrevemos a perguntar não « contra que lutamos nós», mas « Pelo que lutamos Hannah Arendt, Entre O Passado e O Futuro.

quinta-feira, 27 de março de 2008

libertas-vitalis.blogspot.com: Catarse Guerreira.

libertas-vitalis.blogspot.com: Catarse Guerreira.

filosofia e política: a inversão marxista?

«Na filosofia de Marx-que, mais do que virar Hegel de cabeça para baixo, inverteu a tradicional hierarquia entre pensamento e acção, entre contemplação e trabalho, e entre filosofia e política-o começo estabelecido por Platão e Aristóteles deu provas da sua vitalidade ao ter obrigado o autor de O Capital a incorrer em formulações flagrantemente contraditórias, sobretudo nessa parte da sua doutrina que habitualmente se chama de utópica. O mais importante é a sua previsão de que, no âmbito de uma «humanidade socializada», o «Estado definharia», e que a produtividade do trabalho se tornaria tão elevada que aquele acabaria de algum modo por se abolir a si mesmo, assegurando uma quantidade quase ilimitada de tempo livre. Para além de constituirem previsões, estes enunciados traduzem, obviamente, aquele que seria o ideal de Marx acerca da melhor forma de sociedade. Como tal, eles não são utópicos : reproduzem, isso sim, as condições políticas e sociais da cidade-estado ateniense, essa mesma que serviu de modelo experimental a Platão e Aristóteles e que constitui, portanto, o fundamento em que assenta a nossa tradição. A polis ateniense funcionava sem que houvesse uma separação entre governantes e governados, e por isso não constituia um Estado, se usarmos o termo tal como Marx o fez segundo as definições tradicionais das formas de governo, ou seja: governo de um só homem ou monarquia, governo de poucos ou oligarquia, e governo da maioria ou democracia. Além disso, os cidadãos gregos só o eram na medida em que dispunham de tempo de lazer, na medida em que estavam livres do trabalho, tal como Marx o havia previsto para o futuro. Não só em Atenas mas também ao longo de toda a Antiguidade até à Idade Moderna, quem trabalhava não era cidadão, e cidadãos eram, antes de mais, aqueles que não trabalhavam ou que possuiam algo mais do que a sua força de trabalho.Esta similitude torna-se ainda mais evidente quando observamos o conteúdo real da sociedade ideal de karl Marx. O tempo de lazer é encarado como sendo possível apenas sob condições de ausência de Estado, ou sob condiões nas quais, segundo a famosa frase de Lenine, que traduz com bastante precisão o pensamento de Marx, a administração da sociedade fosse simplificada de tal modo que qualquer cozinheira pudesse encarregar-se disso. Claro que, em tais circunstâncias, os assuntos políticos, a simplificada «adminisitração das coisas» de que falava Engels, só poderia interessar a uma cozinheira ou, quando muito, a « essas mentes medíocres» que Nietzsche acreditava serem as mais qualificadas para tomarem conta da coisa pública. Isto, na verdade, diferia bastante da situação concreta que se verificava na Antiguidade onde, pelo contrário, as obrigações políticas eram consideradas tão difíceis e absorventes que aqueles que as exerciam não podiam ocupar-se de nenhum trabalho fatigante.»Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro.

quarta-feira, 26 de março de 2008

filosofia e política.

«A nossa tradição de pensamento político tem um começo bem definido:as doutrinas de Platão e de Aristóteles. Estou em crer que teve um final igualmente bem definido, com as teorias de Karl Marx. O começo deu-se quando, na alegoria da caverna, na República, Platão descreveu a esfera dos assuntos humanos-tudo o que diz respeito ao viver em conjunto dos homens num mundo comum-em termos de escuridão, confusão e engano, de que se devem apartar todos os que aspiram ao verdadeiro ser, se querem descobrir o claro céu das ideias eternas. O final chegou com a declaração de Marx de que a filosofia e a sua verdade não se encontram situadas fora dos assuntos humanos e do seu mundo comum, mas precisamente neles, e que só podem ser «concretizadas» na esfera da vida em comum, a que ele chamou «sociedade», e mediante o aparecimento de «homens socializados»[vergesellschaftete Menschen] A filosofia política implica necessariamente a atitude do filósofo em relação à política: tradicionalmente, esta começou com o afastamento do filósofo em relação à política, a que seguiu um regresso com o objectivo de impor os seus próprios parâmetros aos assuntos humanos; o final dessa tradição sobreveio quando um filósofo se afastou da filosofia com a intenção de a «materializar» na esfera da política. Esta foi a famosa tentativa de Marx, revelada antes de mais na sua decisão[ em si mesma filosófica] de abjurar a filosofia e, seguidamente, na sua intenção de« transformar o mundo» e, desse modo, as mentes filosofantes, a «consciência» dos homens।» Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro

terça-feira, 25 de março de 2008

o sátiro como símbolo dionisíaco!

«O sátiro, tal como o pastor idílico dos tempos modernos, são ambos o produto de uma nostalgia pelo estado natural e primitivo. Mas com que garra o grego se deixa possuir pelo seu deus das florestas e com que timidez e fragilidade o homem moderno se ondula perante a imagem lisonjeadora de um pastor gracioso, sensível e tocador de flauta! Era a natureza, ainda não manchada por forma alguma de conhecimento, ainda não rasagada por qualquer forma de civilização, o que o grego via na imagem do sátiro, que por isso mesmo não lhe parecia comparável com o macaco degenerado. Bem pelo contrário: era o arquétipo do homem, a expressão dos seus impulsos mais altos e fortes, o sonhador entusiasta que cai em êxtase na presença do deus, o companheiro complacente que se deixa possuir pela paixão e pelos sofrimentos do deus, o anunciador de uma sabedoria oriunda do que há de mais profundo na natureza, o símbolo da omnipotência genesíaca da natureza que o grego se habituou a olhar com uma respeitosa admiração. O sátiro era, enfim, algo de sublime e de divino, e assim deveria ter aparecido ao olhar quebrado pela dor do homem dionisíaco. O pastor petulante e fictício teria sido para ele uma figura insultuosa, porque o olhar deste sátiro repousava, com uma satisfação sublime, sobre os traços grandiosos de uma natureza ainda não explorada e atrofiada Aqui, a ilusão de civilização era compensada pela imagem primitiva do homem, aqui manifestava-se o homem verdadeiro, o sátiro barbudo que saudava alegremente o seu deus. Perante ele o homem civilizado reduzia-se a uma caricatura mentirosa.» Nietzsche, A Origem da Tragédia.

O modelo optimista socrático?

«Em face deste pessimismo prático, Sócrates é o arquétipo do optimismo teórico, aquele que, possuido por esta crença na inteligibilidade da natureza das coisas, atribui ao saber e ao conhecimento a força de um remédio universal e vê na ignorância o mal em si. Penetrar nas profundidades e separar o verdadeiro conhecimento da ilusão e do erro era, para o homem socrático, a missão mais nobre, a única missão verdadeiramente humana: de tal modo que, desde Sócrates, este mecanismo dos conceitos, dos juízos e dos raciocínios passou a ser considerado, acima de todas as outras faculdades como a actividade suprema e o dom mais admirável da natureza.Até mesmo as acções morais mais sublimes, os movimentos da piedade, do sacrifício, do heroísmo e essa calma profunda que os Gregos designavam de sofrosine foram deduzidos da dialéctica do saber e considerados como passíveis de ensinamento por Sócrates e por todos os seus herdeiros de pensamento até aos nossos dias. Quem experimentou o prazer do conhecimento socrático e sentiu como este procura abarcar em círculos cada vez mais amplos todo o mundo dos fenómenos, jamais será possuido por um aguilhão tão forte capaz de o incitar a viver, como é este desejo de levar até ao fim esse processo lógico de conquista e de o tecer numa rede intrasponível de malhas muito apertadas. Quem se conservar nesta predisposição não poderá deixar de ver no Sócrates de Platão o mestre que ensina uma forma absolutamente nova da «serenidade grega» e da felicidade da existência que procura revelar-se em actos e que, na maioria das vezes, o consegue, através da acção educativa e da maiêutica que exerce[ com o fim último de produzir o génio] sobre uma elite de jovens e nobres espíritos». Nietzsche, A Origem da Tragédia.

A lógica e a visão trágica?

«É então que a ciência estimulada pelo vigor da sua poderosa ilusão se precipita irresistivelmente para os seus próprios limites, contra os quais se quebra o optmismo que se esconde na essência da lógica. É que o círculo da ciência acarreta para a sua circunferência uma infinidade de pontos e ainda que seja completamente impossível prever como é que todo o círculo poderia ser medido, o homem nobre e dotado intelectualmente, antes de chegar a meio da sua vida, encontra fatalmente estes pontos limites da circunferência onde fica abismado perante o inexplicável. Quando chegado a este ponto limite vê cheio de espanto, que a lógica se enrola nos seus próprios limites, tal como a serpente ao morder a sua própria cauda abre-se então a visão de uma nova forma de conhecimento, o conhecimento trágico, que não pode sequer suportar sem a protecção e o remédio da arte» Nietzsche, A Origem da Tragédia.

domingo, 23 de março de 2008

A plataforma liberal: quarto princípio.

O último grande prinípio constitutivo da plataforma liberal que merece ser mencionado aqui, nomeadamente por constituir um ponto de importante colisão com a discussão republicana, corresponde ao tema actualmente formulado por Rawls da neutralidade do Estado relativamente às convicções e opiniões em matéria de religião e de moral: não recordaremos aqui a análise histórica que propõe Rawls, insistindo na adopção deste princípio na sequência das guerras de religião inglesas, mas poderíamos combinar uma abordagem histórica deste tipo com uma abordagem mais conceptual, relacionando este quarto princípio com as exigências já incluídas no primeiro[ A autonomia da sociedade exclui, por exemplo, uma religião do Estado] e no terceiro[ A valorização das liberdades individuais implica o reconhecimento da liberdade de opinião e de consciência]. Este quarto princípio possui, como é óbvio, uma importância crucial por tudo o que induz, nomeadamente a respeito daquilo que em França se chama a laicidade, sobre a qual nos limitaremos a referir que , conquanto no plano histórico tenha emergido progressiva e tardiamente, a sua perspectiva já estava virtualmente constituída na própria concepção do liberalismo político[ como o testemunha , nomeadamente o famoso escrito de Locke acerca da tolerância, 1689].Outras consequências deste princípio de neutralidade do Estado serão melhor discutidas na releitura republicana, A começar pela separação entre o direito e a moral, sob a forma de convicção liberal segundo a qual não é necessário ser-se moral para se ser um bom cidadão, isto é, para obedecer às leis, mas que o interesse pode contanto que seja bem compreendido, constituir a única mola do Estado de direito: trata-se de um tema muito saliente na tradição liberal, sob a forma de neutralidade axiológica do Estado[ ou nas palavras de Rawls, da sua neutralidade em relação às concepções do Bem, ] da qual se destaca, além disso, muito facilmente, a perspectiva segundo a qual a educação, na óptica liberal, deveria ser, antes de tudo, uma educação da inteligência e não uma educação para a virtude. É justamente por ser neutral que o Estado liberal não pode pedir aos cidadãos que sejam virtuosos ou que dêem provas de uma ou outra qualidade moral associada a uma certa ideia do Bem, mas apenas que obedeçam às leis-o que, como afirmava Kant, até um povo de demónios é capaz de fazer desde que possua alguma inteligência,» História da Filosofia Política, VOl 4, Direcção de Alain Renault

sábado, 22 de março de 2008

A plataforma Liberal: 2º e 3º princípios.

2. O segundo princípio da plataforma liberal pode ser identificado como o da soberania do povo, exercido por intermédio de representantes: O liberalismo político é, nesse sentido, uma figura ou uma versão da democracia, sendo a concepção «democrático-liberal» aquela que R. Aron definia pela ideia de um regime «constitucional-pluralista» no qual a dimensão constitucional remete para a limitação do Estado[pois a constituição agrega a definição dos seus poderes e, portanto, a sua delimitação também] e no qual a dimensão do pluralismo[ A referência á pluralidade dos partidos políticos] corresponde à ideia de democracia representativa[ pois os partidos representam supostamente a diversidade dos grupos sociais e dos interesses]»

3.Um terceiro princípio do ideal-tipo liberal é o da valorização do individuo e das suas liberdades. Trata-se de um princípio que se deduz evidentemente do primeiro, pois a sociedade cuja autonomia em relação ao Estado o liberalismo reconhece define-se como o conjunto dos individuos e dos grupos de individuos e, nesse sentido, reconhecer a limitação do Estado é também reconhecer o indivíduo como princípio e como valor. Portanto, este terceiro princípio foi aquele que fez do liberalismo político um individualismo, e do governo civil ou Estado Liberal um instrumento ao serviço da protecção das liberdades individuais concebidas em termos de independência relativamente a qualquer outra instância à excepção da propria vontade individual: Por outras palavras, o liberalismo priveligia as liberdades individuais entendidas como aquilo que hoje se designa, desde o célebre artigo de Isaiah Berlin e da adopção da sua terminologia pelo republicanismo contemporâneo, por «liberdades negativas»- e, por conseguinte, é lógico que possamos classicamente apresentar a lista dessas liberdades negativas[ por exemplo, nas Declarações dos Direitos do Homem de finais do século XVIII] como constituindo o chamado «credo liberal»[ A propósito disto, convém recordar que os direitos do homem começaram por ser uma peça central da herança e da tradição liberais, antes de, com base numa reeinterpretação, se tornarem, no séx.XIX, um ingrediente da tradição socialista]. História da Filosofia Política, vol 4, Direcção de Alain Renault.

A plataforma liberal:1º princípio

«Ao procurar reunir os elementos que seriam, para os defensores da opção republicana, as peças constitutivas do liberalismo moderno, afigura-se possível conservar, antes de tudo, de uma maneira, por assim dizer ideal-típica, quatro princípios essenciais, correspondendo aos próprios princípios da modernidade, tal com são expressos e defendidos em toda a tradição do liberalismo político, de Locke até Rawls.
1.O princípio de uma limitação do Estado: com efeito, é por surgir como uma teoria dos limites do Estado ou da sua acção[ para retomar o título do grande Ensaio de Wilhelm von Humboldt, publicado em 1792, Ensaio para Definir os limites da Acção do Estado], que o liberalismo político é colocado numa relação de antítese com o absolutismo político. Foi o que aconteceu historicamente, aquando do nascimento inglês do liberalismo, no século XVII, mas também conceptualmente, o que foi compreendido e realçado por um republicano tão convicto como Fichte, no seu Fundamento do Direito Natural[1796], onde reconstituia toda a problemática jurídico-política a partir da antinomia do liberalismo e do absolutismo, sugerindo a sua identificação com os termos do conflito entre Locke e Hobbes[ver vol III, « Rousseau, Kant e Fichte»por Alain Renault e P. Savidan]. É certo que podemos, hoje em dia, discutir esta apresentação, nomeadamente quanto a Hobbes, mas não deixa de ser verdade que foi na sua oposição à teoria do absolutismo que Locke defendeu esse primeiro princípio da plataforma liberal, que consiste em reconhecer o Estado[ o governo civil] como necessário e, portanto ,em limitar a sociedade pelo reconhecimento do Estado[ contra, antecipadamente, qualquer forma de anarquismo, que tendia, pelo contrário, a dissolver o Estado na sociedade], mas, ao mesmo tempo, em limitar o Estado pelo reconhecimento de uma autonomia da sociedade[ em oposição ao absolutismo ou, antecipadamente, ao socialismo de Estado, que diluem ambos a sociedade no Estado»
História da Filosofia Política, vol 4-Direcção de Alain Renault.

sexta-feira, 21 de março de 2008

A viagem dos signos e dos simulacros.

É a viagem dos signos e dos simulacros

onde os povos e as civilizações se fortalecem

para ultrapassar na vida a resignação dos fracos;

...

a fragrância do mito e a girândola do tempo

onde todo o enredo é berço e dança e mistério

e a vida se engrossa num precioso e inesgotável minério;

...

a força dos gestos e o sonho à imortalidade

onde nas brumas do futuro se consultam os oráculos

e nas raízes se escutam as vozes da ancestralidade;

...

Luís Lourenço, Poética do instante Filosófico.

quarta-feira, 19 de março de 2008

O poder das associações

Com efeito, a maioria exerce a sua tirania quando impede a localização do poder social. Não há pior opressão do que a opinião difusa e é realmente assim a ditadura da opinião. Vemos por conseguinte, o motivo que acabou por levar Tocqueville a valorizar as associações, pois a ciência política nova a que Tocqueville aspira é, ao fim e ao cabo, a «ciência da associação»: «Nos países democráticos, a ciência da associação é a ciência-mãe; o progresso de todas as outras depende do seu progresso.»

A chave da liberdade política depende, na sua óptica, do espírito de associação e essa convicção possui uma grande coerência na obra de Tocqueville.

À primeira vista, acreditaríamos que decorria apenas do exemplo americano: é verdade que Tocqueville avaliou a saúde da democracia americana pela bitola do apreço pelas associações. Se « os americanos combateram, pela liberdade, o individualismo a que que a igualdade dá origem e venceram afirma ele, é porque souberam alimentar entre eles uma vida política intensa, multiplicando «as ocasiões de actuar em conjunto» e trabalhar desse modo pela prosperidade, ao mesmo tempo que com isso celebravam a sua independência.

Mas fundamentalmente, Tocqueville faz o elogio das associações porque vê nelas o eco contemporâneo da liberdade que existia no Antigo Regime, quando a nobreza, que ainda não tinha sido dizimada pelos reis niveladores exercia um poder autêntico-poder que se interpunha eficazmente entre o súbdito e o soberano[ entre o individuo e o Estado]

A Montequieu causava espanto que a Constituição inglesa tivesse conseguido salvaguardar os nobres como um poder moderador. Em O Antigo Regime e A Revolução Tocqueville lamenta que a França não tenha tido a sabedoria da Inglaterra: «Será de lamentar sempre que essa nobreza, em vez de ter sido submetida ao domínio das leis, tenha sido abatida e desenraizada. Ao agir assim, privou-se a nação da sua substância e infligiu-se à liberdade uma ferida que nunca sarará»

Em Da Democracia na América, Tocqueville não admite um tal saudosimo pois que declara encontrar o equivalente da liberdade aristocrática na lberdade expressa em democracia pelas associações civis ou políticas São as associações que, nos povos democráticos, devem fazer as vezes dos particulares poderosos que a igualdade das condições fez desaparecer»

Verdadeiros poderes intermédios na acepção que Montesquieu atribuia à expressão, as associações resumem o combate de Tocqueville pela liberdade política: constituem o antídoto contra o individualismo, ao corrigirem a fraqueza e ao abalarem a apatia do cidadão atomizado, educam para a vida pública e proporcionarem oportunidades de articular o interesse público e o interesse privado, como Tocqueville sublinha. História da Filosofia Política, vol 4-Direcção de Alain Renault.

terça-feira, 18 de março de 2008

Tocqueville e a democracia na América.

Embora defenda a auto-responsabilização da sociedade, já vimos como desconfia do poder da maioria. Aplicada absolutamente, a liberdade política produz efeitos perversos que Tocqueville agrupa sob a expressão «tirania da maioria». Por esta razão, a actualidade de Tocqueville é inegável. Em 1835, os Estados Unidos já lhe mostraram «O espectáculo dessa tirania» e sugeriram as soluções susceptíveis de salvar a própria liberdade política: ele viu, como na América, que não soube imitar a Constituição inglesa [causava admiração a Montesquieu que ela tivesse sido concebida para garantir as liberdades políticas], a maioria inverteu o poder legislativo ao ponto de sufocar o poder executivo. Tocqueville compreendeu como essa maioria impõe a sua lei aos deputados ao ponto de destruir todas as garantias do governo representativo e de exercer o equivalente de uma democracia directa. Compreendeu também o risco que constituia o preconceito segundo o qual, como todas as inteliências são iguais, existe forçosamente mais sabedoria em muitas que numa só. A América que percorre em 1830 devolve-lhe a imagem de um regime onde a maioria pode, com toda a legitimidade, forçar a minoria e impor um conformismo, uma demagogia ruinosa para a independência de espírito e a discussão pública,

É nesta perspectiva que enuncia o risco mais importante que a América corre: ao forçar as minorias oprimidas[pensa evidentemente nos Negros] a recorrerem à violência deseperada, a maioria expõe a democracia à anarquia.

Contudo, não deixa de ser verdade que os Estados Unidos souberam erguer protecções contra esta tirania da maioria, e essa protecções constituem aos olhos de Tocqueville, os ingredientes necessários de um bom uso da liberdade política. Trata-se por um lado, de disposições que impedem a centralização administrativa: se a maioria governa a nível central, é incapaz de aplicar no pormenor as suas instruções de governo, pelo que permanecem espaços de liberdade onde podem desenvolver-se iniciativas locais. Trata-se, por outro lado, do espírito de jurista muito desenvolvido entre os americanos, espírito esse que é acompanhado por um gosto pelas formas e procedimentos que se opõem aos excessos revolucionários ou à arbitrariedade das maiorias. História da filosofia Política, 4-Direcção de Alain Renault.

segunda-feira, 17 de março de 2008

A liberdade dos Antigos e a liberdade dos Modernos?

O trajecto da perfectibilidade humana pode interpretar-se, então, como o do progresso da igualdade, embora se caracterize também pela oposição de duas concepções de liberdade. Na célebre conferência Da liberdade dos Antigos comparada com a dos Modernos, Constant esforça-se mais por comparar os dois ideais-tipo sucessivos do que por descrever pormenorizadamente a evolução.
A liberdade dos Antigos caracteriza-se simultaneamente pela participação dos cidadãos nos assuntos públicos e por uma total sujeição do individuo à totalidade social[holismo]. Promoção da individualidade política, nega, em contrapartia, qualquer existência à individualidade privada: O individuo só existe enquanto cidadão.
Pelo contrário, a liberdade dos Modernos baseia-se num individualismo de princípios, ou seja, na ideia de que o individuo vale mais do que a totalidade. Dado que o indivíduo preexiste[ontologicamente] à sociedade, é forçoso reconhecer que a sua vida não poderia reduzir-se à vida comum; é forçoso, então reconhecer uma inevitável separação entre a esfera da vida política e a da vida social[individual]. Esta separação não pode ser absoluta, sem o que se correria o risco de condenar a própria vida social; torna-se então indispensável uma representação[sob qualquer forma], isto é, a manuenção de um elo entre o privado e o público. Por conseguinte, é por não ser apenas um cidadão que o individuo moderno tem necessidade de ser representado.
Assim, a liberdade dos Modernos « é, Para cada um, o direito de estar submetido apenas às leis, de não poder ser preso nem detido, nem morto, nem maltratado de alguma maneira pela vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É, para cada um, o direito de expressar a sua opinião, de escolher a sua ocupação e de a exercer; de dispor da sua propriedade, e até de a usar mal, de ir e vir sem ter que obter permissão para isso e sem dar conta dos seus motivos ou diligências. É, para cada um, o direito de se associar a outros indivíduos, quer para conferenciar sobre os seus interesses, quer para professar o culto que ele e os seus associados preferem, quer simplesmente para preencher os dias e as horas de maneira mais conforme com as suas inclinações e fantasias. Finalmente, é, para cada um, o direito de influir na administração do governo, quer por meio da nomeação de todos ou de certos funcionários, quer por representações, petições, pedidos que a autoridade está mais ou menos obrigada a ter em consideração.
Qualquer destes dois modelos de liberdade[holista-participativo e individualista-representativo] comporta um risco: para os Antigos, o risco de assistir à aniquiliação da independência privada por via do exercicio do poder e, para os Modernos, «o perigo de renúncia ao direito de partilha do poder político» devido à preocupação exclusiva com os assuntos e interesses privados. Em resumo, o que os Modernos ganham em individualização correm o risco de perder em participação » H. Filosofia Política, volume 4 , Direcção de A .Renault.

domingo, 16 de março de 2008

Utilitarismo:mérito e limites?

O mérito da visão clássica, na formulação de Edgeworth, Benthham e sigdwick, está em reconhecer claramente o que está em jogo, isto é, a prioridade relativa dos princípios da justiça e dos direitos deles derivados. O problema está em se saber se as desvantagens impostas a alguns podem ser compensadas pela maior soma de felicidade gozada por outros ou se a justiça exige igual liberdade para todos e admite apenas as desigualdades económicas e sociais que são do interesse de cada um. Implícita na contraposição entre o utilitarismo clássico e a teoria da justiça como equidade está uma diferença na concepção subjacente de sociedade. Num caso, concebemos a sociedade bem ordenada como uma estrutura de cooperação que visa obter vantagens recíprocas, regulada por princípios que são escolhidos por sujeitos colocados numa siuação inicial que obedece às regras da equidade; no outro, A sociedade é vista como a administração eficiente de recursos sociais, que se destina a maximizar a satisfação do sistema de desejos construído por um espectador imparcial a partir de múltiplos sistemas individuais, aceites como dados. A comparação com o utlitarismo clássico, na sua derivação mais natural, põe em relevo esta contraposição» John Rawls, Uma Teoria da Justiça.

sábado, 15 de março de 2008

O drama do Mundo na essência da música.

É o drama do Mundo na essência da música
onde o coração humano se irriga no coração do Mundo
com o sublime véu que mais protege no abismo profundo;
...
a alegria e os picos da felicidade
que voam na arte como uma inspiração divina
e banham a vida numa das suas fontes mais querida;
...
a força universal da dor e da alegria
que na vida e na arte aspiram à sintonia
e invertem o ingénuo saber em cósmica sabedoria;
...
o voo da vida na substância da arte
onde o amor à liberdade e à eterna justiça
sopram ao homem o seu mais nobre combate;
....
Luís Lourenço, Poética do instante filosófico.

A teoria da Justiça como equidade.

«Por seu lado, na teoria da justiça como equidade, as partes aceitam antecipadamente um princípio de igual liberdade, e fazem-no sem ter conhecimento dos seus objectivos particulares. Concordam implicitamente, portanto, em conformar a sua concepção sobre o seu próprio bem às exigências dos princípios da justiça ou, pelo menos, a não fazerem exigências que os violem directamente. Aquele que descobre que gosta de ver os outros em situação de menor liberdade compreende que não pode ter qualquer pretensão à realização do seu prazer. O prazer que retira das privações alheias é, em si mesmo, errado: a sua satisfação viola um princípio ao qual daria o seu acordo na situação original. Os princípios do justo e, portanto, também os da justiça, limitam os desejos cuja satisfação pode ter valor; impõem restrições quanto ao que possam ser as concepções razoáveis do bem de cada um. Ao traçar os seus planos de vida, e ao decidir sobre as suas aspirações, os sujeitos levam em conta estas limitações. Deste modo, na teoria da justiça como equidade não se tomam as propensões e inclinações dos homens, sejam elas quais forem, como um dado, para depois buscar a melhor forma de as satisfazer. Pelo contrário, os seus desejos e aspirações são limitados desde o início pelos princípios da justiça, os quais especificam os limites a respeitar pelos sistemas de objectivos de cada um. Podemos expressar este facto afirmando que na teoria da justiça como equidade o conceito de justo é anterior ao conceito de bem. Um sistema social justo define os limites dentro dos quais os sujeitos devem desenvolver os seus objectivos e fornece uma estrutura de direitos e oportunidades, bem como o conjunto dos meios de satisfação pelo uso dos quais tais objectivos podem ser equitativamente prosseguidos. A prioridade da justiça é reconhecida, em parte, através da afirmação de que os interesses que obrigam à violação da justiça são destituidos de valor.Não possuindo qualquer mérito, as exigências respectivas não podem ser impostas.» John Rawls, Uma Teoria da Justiça.

sexta-feira, 14 de março de 2008

As éticas teleológicas, para J.Rawls.

«É essencial não esquecer que, numa teoria teleológica, O conceito de bem é determinado independentemente do conceito de justo. Isto tem duas consequências. Em primeiro lugar, estas teorias consideram que os nossos juízos sobre aquilo que consideramos bem[os nossos juizos de valor] são uma classe especial de juízos que o senso comum pode intuitivamente distinguir e, em consequência, propõem a hipótese de que o justo consiste em maximizar bem anteriormente determinado. Em segundo lugar, a teoria permite apreciar do bem de algo sem referência ao conceito de justo. Por exemplo, se se considera que o prazer é o único bem, podemos presumir que os diversos prazeres podem ser reconhecidos e hierarquizados mediante critérios que não pressupõem qualquer padrão de justo, ou daquilo que normalmente pensamos ser justo. Mas se por outro lado, a distribuição de bens for considerada como um bem, por hipótese de nível superior, e a teoria nos orientar para a aobtenção do maior bem possível[onde se inclui, entre outros o bem que consiste na distribuição] deixamos de ter uma teoria teleológica no sentido clássico. O problema da distribuição está abrangido no conceito intuitivo de justo pelo que a esta teoria faltaria uma definição independente de bem. A claridade e a simplicidade das teorias teleológicas tradicionais deriva em boa medida do facto de elas dividirem os nossos juízos morais em duas classes, uma das quais é caracterizada em separado, sendo depois a outra ligada à primeira mediante um princípio de maximização.
As doutrinas teleológicas diferem claramente de acordo com a forma como a concepção do bem é especificada. Se ela for vista como a realização daquilo que no homem é excelente através das várias formas de cultura, teremos o que se pode chamar perfecionismo. Esta noção encontra-se em Aristóteles e em Nietzsche entre outros. Se o bem for definido como prazer temos o hedonismo; se for como felicidade temos o eudaimonismo, e assim sucessivamente. Na minha interpretação o princípio da utilidade na sua forma clássica define o bem como satisfação do desejo , ou talvez melhor como a satisfação do desejo racional. Isto está de acordo com os pontos essenciais da teoria fornece dela, creio, uma interpretação correcta. Os termos adequados para a cooperação fixados por aquilo que, nas circunstâncias concretas, permita obter a maior soma de satisfações dos desejos racionais dos sujeitos. É impossível negar o carácter imediatamente plausível e atraente desta concepção.» John Rawls, Uma Teoria da Justiça.

quinta-feira, 13 de março de 2008

O dever em abstracto: para quê?

«A virtude, o dever, o bem em si, o bem com carácter de impessoalidade e de validade universal,
são quimeras em que se expressa a decadência, o último esgotamento da vida, a charlatanice de
nisberg. As mais profundas leis da conservação e do crescimento ordenam o contrário: isto é
que cada um encontre o seu imperativo categórico. Um povo perece quando confunde os seus
deveres com o conceito de dever em geral. Nada arruina mais profunda e intimamnte que aquele
dever impessoal, aquele sacrifício perante o Maloch da abstracçãNietzsche, Anticristo.

A ética de John Rawls como deontologia.

A última distinção reside no facto de o utilitarismo ser uma teoria teleológica, enquanto a justiça como equidade não o é. Por definição, portanto, esta é uma teoria deontológica, o que significa que ou não especifica o conceito de bem independentemente do de justo ou que não interpreta o conceito de justo como maximização do de bem.[Deve notar-se que as teorias deontológicas são definidas por exclusão face às teleológicas, e não como visões que caracterizam a justeza das instituições e dos actos independentemente das suas consequências. Todas as doutrinas éticas dignas de atenção tomam as consequências dos actos e instituições em linha de conta na avaliação do que é justo. Uma teoria que o não fizesse seria simplesmente irracional e disparatada ]. A teoria da justiça como equidade é uma teoria deontológica do segundo tipo. Do facto de se partir da ideia de que as partes na posição original devem escolher um princípio de igual liberdade e de que as desigualdades económicas e sociais são limitadas às que sejam no interesse de todos não decorre que as instituições maximizem o bem.[Aqui admito, juntamente com os utilitaristas que o bem é definido como a satisfação de um desejo racional.] É evidente que não é impossível que a resultante seja o maior bem possível, mas tal será uma coincidência. O problema da obtenção do melhor resultado líquido de satisfação nunca ocorre na teoria da justiça como equidade; O princípio da maximização não é utilizado. John Rawls, Uma Teoria da Justiça.

quarta-feira, 12 de março de 2008

A justiça como equidade

«É razoável pensar que as partes na posição original são iguais. Isto é, todos gozam dos mesmos direitos no processo para a escolha dos princípios; todos podem apresentar propostas, submeter argumentos em seu favor, e assim por diante. É óbvio que o objectivo destas condições é representar a igualdade entre os seres humanos enquanto sujeitos morais, enquanto criaturas com uma concepção do seu próprio bem e capazes do sentido da justiça. A base da igualdade é constituída pela similitude entre a situação dos sujeitos quanto a este duplo aspecto. Os sistemas de objectivos não são ordenados segundo o seu valor e presume-se que todos os sujeitos têm a capacidade para agir de acordo com os princípios adoptados, quaisquer que eles sejam. Juntamente com o véu da ignorância, estas condições definem os princípios da justiça como aqueles aos quais sujeitos racionais, interessados em melhorar a sua situação e decidindo em posição de igualdade, sabendo que nenhum deles está benificiado ou prejudicado por contingências sociais ou naturais, dariam o seu consentimento» John Rawls, Uma Teoria da Justiça.

terça-feira, 11 de março de 2008

O efémero como presença criadora!

A virtude que transborda, isto é, não o desejo sempre insatisfeito e carente, incapaz de gozar e conservar nada do que conquista, com os olhos sempre cravados no prato do vizinho, incapaz de fazer frutificar, de saborear: esta é forma total de possuir algo sem conta nem medida; não isto, mas o poder do artista, do criador, do aventureiro, do amante, o poder que tudo transborda sem nada perder, o poder que está coeso consigo próprio, e que portanto desconhece o medo de se gastar e da insuficiência, a ambição e o cálculo: o poder é o que faz germinar, o que cria, o que conquista e que dá sem cessar e sem se diminuir..»Nietzsche, Vontade de Poder.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O binómio:estado/sociedade.

  • A ideia moderna de democracia, por mais evidente que nos possa parecer hoje em dia, permanece complexa, atravessada como está por profundos equívocos, que determinam o alcance propriamente político de uma referência a esta ideia.
  • No entanto, nada nos força a ver nesses equívocos, necessariamente, uma fraqueza da ideia democrática:pelo contrário, se se souber captá-los, talvez a reflexão possa transformar essa tensão numa oportunidade suplementar para os ideais democráticos.--no sentido em que a noção moderna de democracia, por conter intrinsecamente em si a possibilidade de vários modelos políticos, pode e deve permanecer um polo de debates fecundos e, portanto, uma ideia viva.
  • A fim de dar uma real consistência a esta perspectiva e mostrar como pode ela alimentar a filosofia política contemporânea, não é inútil regressar ao episódio que desempenhou, sem dúvida, o papel de charneira nas transformações da razão política moderna, isto é, a origem e a evolução do par Estado/sociedade.
  • Não é difícil perceber até que ponto este par de conceitos é intimamente solidário da definição do ideal democrático.Com efeito, é claro que--supondo-se que este par tenha sido produzido sob a forma de uma distinção entre a sociedade, como conjunto de interesses particulares, e o Estado como instrumento ou garante da sua coesão--a maneira como serão concebidas as relações entre os dois termos determinará dispositivos políticos completamente diferentes: num dos extremos, a redução da sociedade ao Estado fundará filosoficamente o projecto de um socialismo de Estado, ou mesmo totalitário, no interior do qual o Estado se tornaria a instância que pretenderia organizar, controlar e, em definitivo absorver a sociedade; no outro extremo, a redução do Estado à sociedade funda , sempre ao nível dos princípios filosóficos, o projecto anarquista de uma supressão total do Estado em proveito de uma socidade supostamente harmoniosa por si mesma।
  • De certa maneira a ideia democrática descobre a sua consistência, se é que descobre, na determinação de um meio-termo entre estes extremos e, portanto, na concepção de uma irredutibildade recíproca dos dois termos: nem a dissolução anarquista do Estado na sociedade, nem a absorção totalitária do Estado na sociedade, mas a fórmula de uma autonomia da sociedade em relação ao Estado, que corresponde no próprio princípio, ao reconhecimento de semelhante irredutibilidade. H. da filosofia Política, 4, Direcção de A. Renault

sexta-feira, 7 de março de 2008

Percursos da liberdade

Esta definição de liberdade política como potencial libertação face à política não nos foi incutida só pelas experiências porque aparentemente passamos; ela desempenhou também um grande papel na história da teoria política. Sem ir mais atrás, basta-nos pensar nos pensadores políticos dos séculos XVII e XVIII que, frequentes vezes, identificaram simplesmente a liberdade política com a segurança. Para estes, o mais alto propósito da política « a finalidade do governo» era garantir a segurança; e a segurança, por sua vez, tornava possível a liberdade, e a palavra «liberdade» designava a quintessência de um leque de actividades que ocorriam fora da esfera política. Mesmo Montesquieu, embora tivesse uma concepção da política, não apenas diferente, mas mais elevada do que a de Hobbes ou de Espinosa, chegava, por vezes, a identificar a lberdade política com a segurança. A ascensão das ciências políticas e sociais nos séculos XIX e XX alargou ainda mais o fosso entre a liberdade e a política: pois o governo, que desde o início da Idade Moderna havia sido identificado com o domínio total do político, era agora considerado como o protector não propriamente da liberdade mas do processo vital, dos interesses da sociedade e dos seus sindivíduos. A segurança continuava a ser o critério decisivo, não a segurança do indivíduo contra a «morte violenta» como em Hobbes [para quem a condição de toda a liberdade consistia em estar livre do medo], mas uma segurança que devia assegurar que o processo vital da sociedade como um todo se desenvolvesse sem perturbaçõs. Este processo vital não é limitado pela liberdade, seguindo ao invés uma necessidade que lhe é imanente; e só se pode chamar livre no sentido em que dizemos de um rio que ele flui livremente. Aqui a liberdade não representa sequer o objectivo não-político da política, mas um fenómeno marginal-que de certo modo marca o limite que o governo não pode ultrapassar a menos que estejam em causa a própria vida e os seus interesses e necessidades imediatas.

Assim, para além de nós, que temos motivos próprios para desconfiar da política no que respeita à liberdade, também toda a Idade Moderna divorciou a política da liberdade. Eu podia até recuar mais ainda no passado e evocar velhas memórias e tradições. O secular conceito de liberdade anterior à Idade Moderna insistia em separar a liberdade dos súbditos de qualquer participação directa na governação; « a liberdade e a libertação» do povo «consiste em ser governado por leis», pelas quais a sua vida e os seus bens possam melhor pertencer-lhe; e não em participar do governo, que é coisa fora da sua competência-como Carlos I resumiu no discurso que pronunciou no patíbulo Não foi por um desejo de liberdade que o povo exigiu ter parte na governação ou ser admitido na esfera política, mas por desconfiança em relação a esses que tinham poder sobre a sua vida e os seus bens. De resto a concepção cristã de liberdade política nasceu da suspeita e da hostilidade dos primeiros cristãos em relação à esfera política enquanto tal e de cujas preocupações desejavam ser isentados a fim de serem livres. E esta libertação cristã em prol da salvação, foi precedida, como já sabemos, da abstenção da política defendida pelos filósofos como pré-requisito de um modo de vida mais livre e mais alto--a vida contemplativa. Hannah Arendt, Entre O Passado e O Futuro.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Relações entre liberdade e política?

É claro que a liberdade não caracteriza todas as formas de relacionamento humano nem todos os tipos de comunidade. Onde os homens vivem em conjunto sem formarem um corpo político-como acontece por exemplo nas sociedades tribais ou na privacidade do lar-os factores que regem a sua acção e a sua conduta são, não a liberdade, mas as necessidades da vida e as preocupações relacionadas com a sua preservação. Além disso, onde o mundo-feito-pelo- homem não se converte em cenário para o discurso e para a acção-como nas comunidades governadas de modo despótico, que expulsam os seus súbditos Para a estreiteza do lar e assim impedem a formação de uma esfera pública politicamente garantida, a liberdade fica sem espaço onde emergir. Claro que pode sempre habitar no coração dos homens como desejo ou vontade ou esperança ou anseio; mas o coração humano, como todos sabemos, é um local bastante escuro, e o que quer que aconteça na sua obscuridade dificilmente pode ser considerado um facto demonstrável. A liberdade enquanto facto demonstrável coincide com a política e as duas estão intimamente relacionadas.

Contudo, e à luz da nossa experiência actual, é precisamente esta coincidência entre política e liberdade que não podemos tomar como garantida.A ascensão do totalitarismo, a sua reivindicação de ter subordinado todas as esferas da vida às exigências da política e a sua permanente insistência em não reconhecer direitos civis, principalmente o direito ao privado e ao alheamento da política leva-nos a pôr em dúvida não só essa coincidência entre política e liberdade, mas até à própria compatibilidade de ambas. Tendo visto como a liberdade desapareceu sempre que as chamadas considerações políticas se impuseram a tudo o resto, nós hoje tendemos a crer que a liberdade começa onde a política acaba. No fim de contas não estará certo aquele credo liberal que afirma«Quanto menos política, mais liberdade?» Não é verdade que quanto menor for o espaço ocupado pela política maior é o campo deixado à liberdade? Pois não teremos nós razão em medir a extensão da liberdade em cada comunidade pelo espaço que esta concede a actividades aparentemente não-políticas, como o livre empreendimento económico, a liberdade religiosa, de ensino, ou no âmbito da actividade intelectual ou cultural? Não será verdade, como todos de algum modo acreditamos, que a política só é compativel com a liberdade porque, e na medida em que, garante a possibilidade de nos libertarmos da política? Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro.

terça-feira, 4 de março de 2008

Filosofia utilitarista?

O utilitarismo possui duas dimensões essenciais. Em primeiro lugar, O seu critério do bem e do mal, à semelhança do epicurismo, é definido por um valor único, a felicidade ou o bem-estar[welfare] de todos os seres capazes de sentir prazer ou dor. O termo «utilidade» deve, pois, ser consideravelmente alargado a tudo o que proporciona satisfação sem ser necessariamente«utilitário» e perde qualquer conotação de instrumentalidade ou de neutralidade relativamente ao fim visado. O imperativo moral visa a utilidade total, calculada como um saldo líquido das satisfações relativamente às desvantagens, valendo todos o mesmo e sendo tratados de maneira imparcial.

O utilitarismo é, por outro lado, e esse é um aspecto essencial, um consequencialismo que se opõe à intervenção de critérios a priori para julgar a acção. Critica uma moral de tipo deontológico[ a de Kant em particular] na qual princípios morais independentes e a priori, intuitivamente conhecidos, outorgam ao acto o seu carácter moral, sem que entrem em linha de conta as consequências observáveis do acto e a avaliação destas. Mais precisamente é o acto e não a pessoa do agente ou o seu «carácter que é objecto de avaliação moral. Como recorda muito claramente Mill, no capítulo II do Utilitarismo, a própria doutrina de Kant só pode ter sentido, se se examinar não apenas a vontade, «boa» ou não do agente, mas também as consequências da sua acção para a felicidade geral. «Para que O princípio de Kant», escreve Mill, «tenha algum significado, é necessário interpretá-lo como se enunciasse que devemos conformar a nossa conduta com uma regra que todos os seres racionais poderiam adoptar com benefício para o seu interesse colectivo».- H. da Filosofia Política 4- Direcção de A.Renault

segunda-feira, 3 de março de 2008

A voz do coro trágico!

Ó Gentes de Tebas, meus concidadãos, olhai para Édipo,

Ele que com seu génio resolveu os famosos enigmas,

E que ascendeu ao poder, um homem todo-poderoso,

Quem podia contemplar sem invejar sua grandeza?

Vede, agora, em quão negra vaga de horrores ele se afundou.

Pois enquanto aguardamos, vigilantes, o derradeiro dia,

Ninguém é feliz, até que a morte nos salve, dos males da vida.

Sófocles, Rei Édipo

domingo, 2 de março de 2008

Saír da mediocridade?

Tudo o que é grande foge à praça pública e ao renome; é longe da praça pública e do renome que sempre viverarm os inventores de valores novos.
Foge, meu amigo, refugia-te na tua solidão. Refugia-te onde sopre um vento rude e forte!
Refugia-te na tua solidão! Viveste demasiado perto dos pequenos e dos desprezíveis. Foge à sua invisível vingança! Para ti apenas têm um sentimento, o rancor.
Não ergas a mão contra eles. São inúmeros: o teu destino não é tornares-te enxota-moscas. Nietzsche, Assim Falava Zaratustra.

sábado, 1 de março de 2008

A arte de compreender e partilhar?

...
É a alegria de compreender e de ser correspondida
onde correm pelo Mundo os eflúvios da sua fertilidade
até beber águas puras e frescas nos recantos da verdade;
...
a riqueza da partilha no auge onde é correspondida
e a viagem volta a ser uma senda iluminada
como a utopia que se converte em plantação realizada;
...
Luís Lourenço, Poética do instante filosófico.