quinta-feira, 27 de março de 2008

filosofia e política: a inversão marxista?

«Na filosofia de Marx-que, mais do que virar Hegel de cabeça para baixo, inverteu a tradicional hierarquia entre pensamento e acção, entre contemplação e trabalho, e entre filosofia e política-o começo estabelecido por Platão e Aristóteles deu provas da sua vitalidade ao ter obrigado o autor de O Capital a incorrer em formulações flagrantemente contraditórias, sobretudo nessa parte da sua doutrina que habitualmente se chama de utópica. O mais importante é a sua previsão de que, no âmbito de uma «humanidade socializada», o «Estado definharia», e que a produtividade do trabalho se tornaria tão elevada que aquele acabaria de algum modo por se abolir a si mesmo, assegurando uma quantidade quase ilimitada de tempo livre. Para além de constituirem previsões, estes enunciados traduzem, obviamente, aquele que seria o ideal de Marx acerca da melhor forma de sociedade. Como tal, eles não são utópicos : reproduzem, isso sim, as condições políticas e sociais da cidade-estado ateniense, essa mesma que serviu de modelo experimental a Platão e Aristóteles e que constitui, portanto, o fundamento em que assenta a nossa tradição. A polis ateniense funcionava sem que houvesse uma separação entre governantes e governados, e por isso não constituia um Estado, se usarmos o termo tal como Marx o fez segundo as definições tradicionais das formas de governo, ou seja: governo de um só homem ou monarquia, governo de poucos ou oligarquia, e governo da maioria ou democracia. Além disso, os cidadãos gregos só o eram na medida em que dispunham de tempo de lazer, na medida em que estavam livres do trabalho, tal como Marx o havia previsto para o futuro. Não só em Atenas mas também ao longo de toda a Antiguidade até à Idade Moderna, quem trabalhava não era cidadão, e cidadãos eram, antes de mais, aqueles que não trabalhavam ou que possuiam algo mais do que a sua força de trabalho.Esta similitude torna-se ainda mais evidente quando observamos o conteúdo real da sociedade ideal de karl Marx. O tempo de lazer é encarado como sendo possível apenas sob condições de ausência de Estado, ou sob condiões nas quais, segundo a famosa frase de Lenine, que traduz com bastante precisão o pensamento de Marx, a administração da sociedade fosse simplificada de tal modo que qualquer cozinheira pudesse encarregar-se disso. Claro que, em tais circunstâncias, os assuntos políticos, a simplificada «adminisitração das coisas» de que falava Engels, só poderia interessar a uma cozinheira ou, quando muito, a « essas mentes medíocres» que Nietzsche acreditava serem as mais qualificadas para tomarem conta da coisa pública. Isto, na verdade, diferia bastante da situação concreta que se verificava na Antiguidade onde, pelo contrário, as obrigações políticas eram consideradas tão difíceis e absorventes que aqueles que as exerciam não podiam ocupar-se de nenhum trabalho fatigante.»Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro.

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