quarta-feira, 30 de abril de 2008

A justiça como virtude primordial?

"Na verdade ninguém tem direito a um grau mais alto de veneração do que aquele que possui o instinto e a força da justiça, porque na justiça unem-se e fortalecem-se as virtudes mais altas e mais raras tal como num mar insondável que acolhe rios por todos os lados e os absorve nele. A mão do justo que está autorizada a fazer justiça não vacila quando segura a balança.Inflexivel por si mesma a mão do justo vai colocando os pesos. O seu olhar não se perturba quando os pratos sobem e descem e a sua voz não é dura nem suave, quando proclama a sentença. Se fosse um frio demónio do conhecimento, espalharia à sua volta a atmosfera glacial de uma majestade sobre-humana e assustadora que precisaríamos de temer em vez de venerar. Mas é humana e portanto tenta elevar-se da dúvida flutuante à certeza rigorosa, de uma indulgente tolerância ao imperativo«tu deves», da rara virtude da magnanimidade à virtude ainda mais rara da justiça: Assemelha-se agora a este frio demónio, mas na raíz mais não é do que um pobre humano; e sobretudo em cada momento expia sobre si próprio toda a humanidade; é tocado pelo que há de trágico numa impossível virtude.-tudo isso o eleva a uma altura solitária, como se fosse o exemplo mais venerável da espécie humana: porque ele quer a verdade, não sob a forma de frio conhecimento e sem consequência, mas como justiçeiro que ordena e pune; a verdade não como propriedade egoísta do individuo, mas como um direito sagrado a quebrar todos os limites da propriedade egoísta: enfim, a verdade como sentença do juízo final e nunca como uma presa capturada no voo e um prazer do caçador. É pois na medida em que o verídico possui a vontade absoluta de ser justo que há algo de grande nesta aspiração à verdade glorificada por todo o lado com tanto alarido.. Nietzsche, acerca da Utilidade da História para a Vida.

terça-feira, 29 de abril de 2008

A relação entre a história e a vida?

Retrato de Ira P. sem data, eternizado na pintura por Tamara de LempickaÓleo sobre madeira. Colecção particular

"Fica pois claro como é necessário acrescentar às duas maneiras de considerar o passado, a monumental e a antiquária, uma terceira maneira, a crítica, e encarar esta também ao serviço da vida. Para poder viver o homem deve possuir a força de quebrar um passado e de o aniquilar, e é preciso que ele utilize esta força de tempos a tempos. Consegue-o convocando o passado perante a justiça, movendo um processo contra ele e condenando-o finalmente. Ora todo o passado é digno de ser condenado, porque é assim com todas as coisas humanas: sempre a força e a fraqueza humanas foram poderosas. Não é a justiça que julga aqui, e muito menos é a graça divina que proclama o julgamento. Mas sim a vida, só a vida, esta potência obscura que pressiona e nunca está satisfeita consigo própria. O seu veredicto é sempre rigoroso, sempre injusto, porque nunca tem a sua origem na fonte apenas do conhecimento; mas na maioria dos casos, a sentença seria a mesma se a justiça fosse pronunciada em pessoa «Porque tudo o que nasce é digno de morrer. É por isso que valeria mais não ter nascido» É preciso muita força para poder viver e esquecer de tal modo o viver e o esquecer estão embrincados. O próprio Lutero afirmou uma vez que o mundo não teria nascido senão de um esquecimento de Deus. Porque se Deus tivesse pensado nos « argumentos de forte calibre» não teria criado o mundo. Acontece portanto que esta mesma vida que tem necessidade do esquecimento exige a destruição momentânea deste esquecimento. Exige-se então o dar-se conta de como é injusta a existência de uma coisa, por exemplo, de um privilégio, de uma casta, de uma dinastia, e o tomar-se consciência até que ponto esta coisa deve desaparecer. E considera-se o passado desta coisa sob o ângulo crítico, atacam-se as suas raízes , passa-se implacavelmente por cima de todas as piedades. É sempre um processo, quero dizer, perigoso para a vida. Os homens e as épocas que servem a vida, julgando e destruindo o passado, são ao mesmo tempo perigosos e em perigo...» Nietzsche, Acerca da Utilidade da História Para a vida.

O que falta a estes três tipos de História?

O SOL E A LUA_ESCHER

"Cada uma destas três formas de estudar a história não tem razão de ser a não ser no seu terreno específico, no seu clima próprio. Quando o homem quer criar algo de grandioso e precisa de tomar conselhos do passado, apropria-se dele por meio da história monumental; Quando pelo contrário quer ligar-se ao que é conveniente, ao que a rotina admirou em todos os tempos, ocupa-se do passado como história de antiquário. Apenas aquele que padece de uma constante opressão se quer libertar deste fardo, só esse sente a necessidade de uma história crítica, isto é, de uma história que julga e condena. Muitas calamidades nascem do que se transplanta aligeiradamente para os organismos। O crítico sem angústia; o antiquário sem piedade; o que conhece a grandeza sem poder realizar a grandeza: eis plantas tornadas estranhas ao seu solo nativo e que por causa disso degeneram em joio. Nietzsche, Acerca da Utilidade da História para a vida.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Homeopatia do histórico com o não-histórico?

"Isto é uma lei universal: O vivente não pode tornar-se são, forte e fecundo senão nos limtes de um horizonte determinado.Se é incapaz de traçar à sua volta um horizonte, se se deixa pressionar por fins pessoais para enfeudar a sua perspectiva pessoal à de outrem, encaminha-se anafado ou febril para um rápido declínio. A serenidade, a boa consciência, a actividade jubilosa, a confiança no futuro-tudo Isto depende, num individuo como num povo, da existência de uma linha de demarcação que separa o que é claro, o que se pode abarcar com o olhar do que é obscuro e longínquo, depende também da faculdade de se esquecer no momento certo como também, quando é necessário, de recordar no momento exacto;depende do instinto vigoroso que se joga em saber quando é necessário sentir as coisas do ponto de vista histórico e quando é necessário sentí-las do ponto de vista não-histórico. Eis precisamente o princípio que o leitor é convidado a considerar; o ponto de vista histórico, tal como o ponto de vista não histórico são ambos necessários à saúde de um individuo, de um povo e de uma civilização. Nietzsche, Acerca da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a vida.

domingo, 27 de abril de 2008

A faculdade de esquecer?

BUTTERFLIES_ M.C.ESTER

"É, portanto, possível viver quase sem recordação, feliz como mostra o exemplo do animal, mas é absolutamente impossível viver sem esquecer. Se tivesse que me exprimir sobre isto de uma maneira mais simpes ainda, eu diria: há um grau de insónia, de ruminação, de sentido histórico que é prejudicial ao vivente e que acaba por o aniquilar, quer se trate de um homem, de um povo ou de uma civilização.

Para determinar este grau e através dele os limites dentro dos quais o passado deve ser esquecido sob pena de se tornar o coveiro do presente, seria necessário conhecer exactamente a força plástica de um homem, de um povo, de uma civilização, quero dizer esta força que permite desenvolver-se fora de si mesmo, de uma maneira que nos é específica, de incorporar as coisas passadas ou estranhas, de curar as feridas, de substituir o que se perdeu, de refazer as formas quebradas. Há homens que possuem esta força num grau tão mínimo que um único acontecimento, uma única dor, por vezes uma única e ligeira pequena injustiça os faz perigar irremediavelmente como se todo o seu sangue se escoasse por esta pequena fissura". Nietzsche, Da Utilidade e dos Inconvenientes da História para a Vida.

sábado, 26 de abril de 2008

A fadiga de espírito

Primavera eternizada na pintura de Tamara de LempickaÓleo sobre chapa, 40x33 cm.Colecção particular

"A nossa indiferença e a nossa frieza em relação aos homens quando a interpretamos como dureza e falta de carácter, não passa, na maioria das vezes, de fadiga de espírio: logo que ficamos neste estado, os outros tal como nós mesmos são-nos indiferentes ou inoportunos"Nietzsche, Humano, Demasiado Humano II

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Juízo acerca do valor da vida?


"Toda a crença no valor e na dignidade da vida se baseia num pensamento inexacto; é possível unicamente porque a simpatia pela vida e pelos sofrimentos universais da humanidade está pouco desenvolvida no individuo. Mesmo os poucos homens cujos pensamentos se elevam acima de si próprios não chegam a vislumbrar esta vida universal mas apenas partes limitadas. Se formos capazes de dirigir a observação para as excepções, quero dizer, para os grandes talentos e almas puras, se tomarmos a sua produção por fim de todo o universo e tiramos prazer da sua acção, poderemos acreditar no valor da vida, porque esquecemos então os outros homens, mas nem por isso deixamos de pensar inexactamente. E, de modo semelhante, se olharmos para todos os homens, mas valorizarmos neles tão só uma certa espécie de instintos mesmo que egoístas e os desculparmos quanto aos outros ainda assim poderemos esperar qualquer coisa da humanidade no seu todo e nesta medida acreditar no valor da vida, mas também pela inexactidão do pensamento. Mas quer nos comportemos de uma maneira ou de outra, estamos sempre perante excepções face à totalidade os homens. E a grande maioria dos homens que suporta a vida sem grandes queixas, acredita também no valor da existênca, mas é justamente porque cada um deles não vê e afirma mais do que a si próprio e não sai dele mesmo enquanto excepção: tudo o que vai para além da sua pessoa subsiste para ele inapercebido ou percebido apenas como uma penumbra. Assim o valor da vida para o homem vulgar e comum assenta unicamente no facto de que ele atribui mais importância a ele próprio do que ao mundo. A grande falta de imaginação de que sofre, faz com que ele não possa comunicar pelo sentimento com outros seres e por isso participa pouco na sua sorte e nos seus sofrimentos. Aquele que, pelo contrário, chegasse verdadeiramente a participar, deveria desesperar do valor da vida, se conseguisse compreender e sentir em si a consciência total da humanidade e amaldiçoaria a existência, porque a humanidade no seu conjunto não tem nenhum fim, e consequentemente ao examinar a trajectória total do homem nunca poderá encontrar aí consolação e repouso mas sim desespero. Se considerar a ausência final de fim dos homens, a sua própria acção tem aos seus olhos ao aparência de um desperdício. Mas ser capaz de se sentir como humanidade [ e não simplemente como individuo] desperdiçado, da mesma forma que as flores isoladas, desperdiçadas pela natureza, é um sentimento para além de todos os sentimentos. Quem seria capaz dele? Certamente só um poeta: e os poetas sabem sempre consolar-se. Nietzsche, Humano, Demasiado Humano

A crença na liberdade da vontade?

Adão e Eva.Pintura de RubensÓleo sobre madeira, 180x158 cm

"Deste modo: a crença na liberdade do querer é um erro original de todo o ser organizado, tão antigo como as emoções lógicas que existem nele; a crença em substâncias incondicionadas e em coisas idênticas é igualmente um erro tão antigo de cada ser oganizado.Ora, como toda a metafísica se ocupa principalmente de substâncias e da liberdade do querer podemos designá-la como a ciência que trata dos erros fundamentais do homem como se fossem verdades fundamentais" Nietzsche, Humano, Demasiado Humano

terça-feira, 22 de abril de 2008

No mundo não há nem dentro nem fora.

"Do mesmo modo que Demócrito aplicou os conceitos de« em cima e em baixo» os filósofos em geral aplicam o conceito de «dentro e fora» à essência e à aparência do mundo: eles pensam que com estes sentimentos profundos penetramos no interior e nos aproximamos do coração da natureza. Mas estes sentimentos não são profundos senão na medida em que juntamente com eles, de maneira dificilmente perceptível, vêm frequentemente associados certos grupos complexos de pensamentos que designamos por profundos: um sentimento é profundo porque temos por profundo o pensamento que o acompanha. Mas o pensamento profundo pode estar muito afastado da verdade, como por exemplo todo o pensamento metafísico: se abstrairmos do sentimento profundo os elementos do pensamento que aí estão misturados resta o sentimento forte, e este não garante nada a não ser ele mesmo, tal como a crença forte não prova senão a sua força e não a verdade daquilo em que se acredita"Nietzsche, Humano, Demasiado Humano

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Clube Literário do Porto: Convite

  • Tenho o prazer de convidar todos os bloguistas e visitantes do meu blog para a sessão de apresentação do meu livro- Poética do Instante Filosófico- que terá lugar no CLUBE LITERÁRIO DO PORTO, rua nova da alfândega nº 22, na próxima quarta-feira, dia 23 de Abril, pelas 21.30.
  • A apresentação do Livro está a cargo da coordenadora do Clube literário- Dra Helena Padrão;
  • A declamação de poesia está a cargo da Dra. Paulina de Sousa e do Dr. Miguel Leitão.
  • Esta sessão destina-se sobretudo às pessoas interessadas que não puderam estar presentes na cerimónia de lançamento do Livro.

A linguagem como pretensão de ciência?

"A importância da linguagem para o desenvolvimento da civilização reside no facto de que nela o homem se colocava num mundo próprio ao lado de um outro, posição esta que julgava suficientemente sólida para sustentar o resto do mundo em suas bases e tomar-se assim pelo senhor do mundo. Foi porque durante longos períodos de tempo o homem acreditou nos conceitos e nos nomes das coisas como sendo verdades eternas[aeternae veritates], que se outourgou este orgulho em nome do qual se coloca acima do animal: ele pensava realmente que a linguagem lhe permitia o conhecimento do mundo. O criador de palavras não era suficientemente modesto para acreditar que o que fazia se reduzia a dar designações às coisas; pelo contrário, julgava que pelas palavras expressava o conhecimento mais elevado das coisas: de facto a linguagem é o primeiro degrau no esforço que leva à ciência. É a fé na verdade encontrada que, também aqui, fez nascer fontes de força muito poderosas. É só muito mais tarde, nos nossos dias únicamente, que os homens começaram a entrever que tinham propagado um erro monstruoso pela sua crença na linguagem. Por felicidade, é demasiado tarde para que isso determine um recuo da evolução da razão que assenta sobre esta crença.A lógica também assenta sobre postulados aos quais nada corresponde no mundo real, por exemplo, o postulado da igualdade das coisas, da identidade da mesma coisa em diversos pontos do tempo: mas esta ciência nasceu da crença oposta[que havia certamente coisas deste género no mundo real]. O mesmo se passa com as matemáticas que certamente não teriam nascido, se se tivesse sabido primeiro que não há na natureza nem linha exactamente recta, nem círculo verdadeiro, nem medida aboluta de grandeza."Nietzsche, Humano, demasiado Humano, I

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Política do entendimento ou da razão-alcance crítico ?

"A distinção entre política do entendimento e política da razão possui, em primeiro lugar, um fecundo alcance crítico no que se refere às políticas que pretendiam deduzir de uma teoria científica da racionalidade em acção na história as direcções em que deveria empenhar-se hic et nunc, a prática transformadora da sociedade. Baseado na convicção segundo a qual é possível apreender pela razão o sentido da totalidade histórico-social e as leis que regem o seu devir, o poder absoluto daqueles a quem Estaline chamava significativamente «os coriféus da ciência marxista-leninista» possui, como sublinhou justamente C. Castoriadis, um estatuto filosófico preciso:« Se existe uma teoria verdadeira da história, a direcção do desenvolvimento deve ser confiada aos especialistas dessa teoria, aos técnicos dessa racionalidade»- e isto sem limites, pois que, se essa teoria verdadeira pode ser propriedade de um poder, « esse poder deve ser absoluto», e qualquer limitação democrática do poder mais não é do que « concessão à falibilidade humana dos dirigentes». Observação que coincide plenamente com o modo como R. Aron identificou no marxismo todos os ingredienes daquilo a que chamava uma «religião histórica da acção», instalando no horizonte de semelhante política da razão o fanatismo como uma inquietante virtualidade: porque, «se o homem da Igreja detem a verdade universal, por que motivo não obrigaria ele o pagão a professar a Fé nova» e a agir no sentido do que as Escrituras revelam? « Nesta Religião sem alma», escreve ainda Aron, « todos os oponentes se tornam heréticos piores do que criminosos», se o valor absoluto de um fim, cuja realização a razão garante como certa, justifica, na acção que acelera a sua vinda, todos os cinismos, « que importa o preço do triunfo se o fim é sublime?»

Com esta denúncia das imposturas e dos fanatismos inerentes às políticas da razão não se esgota, porém, o alcance crítico da distinção entre política do entendimento e política da razão..." História da Filosofia Política, 4, Direcção de Alain Renault

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Compativeis ou inconciliáveis?

Com efeito, se nos reportarmos à Introdução à Filosofia da História, os dois termos são apresentados «como tipos ideais que não se excluem na realidade»: « Marcam as duas atitudes extremas», das quais uma[a política do entendimento] «corre o risco de denerar em resignação» e a outra[a política da razão] «em cegueira»:« Esta torna-se impotente à força de se fiar na história, aquela à força de a esquecer; esta é mais sensata e aquela mais heroica» como se as duas políticas não pudessem impedir as suas respectivas lógicas de degenerescência, a não ser corrigindo-se uma à outra, a ponto de ser necessário conciliá-las, em vez de as opor. É o mesmo que dizer , concluia Aron em 1938, «que qualquer política é, ao mesmo tempo, uma e outra», porque «não há acção instantânea que não obedeça a uma preocupação remota, nem confidente da Providência que não aproveite as ocasiões únicas»; resumindo: « as qualidades do profeta e do empirista não deveriam ser incompatíveis», a tal ponto é verdade que «a política é ao mesmo tempo a arte das escolhas sem retorno e dos desígnios longínquos». História da Filosofia Política, 4, Direcção de Alain Renault

Política do entendimento ou da razão?

LIBERTAÇÃO_M.C.ESCHER

O político do entendimento, explicava Aron, «procura salvaguardar certos bens, paz, liberdade, ou atingir um objectivo único, a grandeza nacional, em situações sempre novas que se sucedem sem se organizarem»: este tipo de político é « como o piloto que navega sem conhecer o porto» e « para quem, cada instante é novo »।Para ilustrar esta concepção da política, R. Aron mencionava Alain, do qual dirá mais tarde ter herdado a expressão de « política do entendimento », e de Max Weber, a propósito do qual explicitou, no mesmo ano, que recusava qualquer possibilidade para o homem político, de « deduzir logicamente a decisão a tomar num certo momento», porquanto « a conjuntura é sempre única » e «a evolução do todo leva a configurações que se renovam incessantemente»

Por oposição o político da razão era descrito por Aron como aquele que « prevê pelo menos o fim próximo da evolução», no sentido, por exemplo, em que «o marxista sabe do desaparecimento inevitável do capitalismo», e enfrenta como «único problema» a necessidade «de adaptar a táctica à estratégia, a conciliação com o regime actual tendo em vista a preparação do regime futuro».

Resumindo : de um lado, «o homem político não conhece o futuro, conhece a realidade e tenta navegar o melhor que pode, com prudência»; do outro «pretende conhecer o futuro» e «toma as decisões políticas em função de uma evolução histórica que crê prever e dominar», pelo que a acção se apoia «numa previsão global da história»". História da Filosofia Política, 4, Direcção de Alain Renault.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Poema da minha natureza

Crescem as flores no seu dever biológico


e as cores que patenteiam, por sua natureza,


só podem ser aquelas, e não outras.


Vermelhas, amarelas, cor de fogo,


lilazes, carmezins, azuis, violetas,


assim, e só assim,


tudo conforme a sua natureza.


Ásperas são as folhas, macias, recortadas


ou não, tudo conforme;


e o aprumo como tal,


ou rasteiras, ou leves, ou pesadas,


tudo no seu dever,


por sua natureza.



É como os animais,


Em cada qual, por sua natureza,


todo o dever se cumpre.


comem, dejectam, dormem,


fazem amor nas horas competentes,


lutam , caçam, agridem,


rosnam à Lua, trinam, assobiam,


escondem-se, espreitam, fogem, amarinham,


dançam, mudam de pele, agacham-se disfarçam-se,


tudo conforme a sua natureza



Assim eu penso, e amo, e sofro, e vou andando.


tudo conforme a minha natureza.


António Gedeão; OBRA POÉTICA

segunda-feira, 14 de abril de 2008

O êxtase dionisíaco?

Dois sátiros em transe dionisíaco. Quadro de RubensÓleo sobre madeira, 76x66 cm.

«Mas Nietzsche não era apenas discípulo de Schopenhauer, era contemporâneo deMalarmé e dos simbolistas, um defensor de l´art pour l´art. Por isso a consciência da arte contemporânea[radicalizada mais uma vez face ao romantismo] integra a descrição do dionisíaco-enquanto intensificação do subjectivo até ao auto-esquecimento total. O que Nietzsche apelida de «fenómeno estético» desoculta-se na concentrada convivência consigo própria de uma subjectividade descentrada, liberta das convenções quotidianas da percepção e do agir. Só quando o sujeito se perde, quando desencareira em relação às experiências pragmáticas do espaço e do tempo, é atingido pelo choque do repentino, quando vê realizada a « saudade da verdadeira presença»((Octávio Paz) e, perdendo-se a si próprio, se funde no momento; só quando as categorias do agir e do pensar razoáveis tiverem ruído, as normas da vida do dia a dia estiverem despedaçadas-só então se abre o mundo do imprevisto e do absolutamente surpreendente, o domínio da aparência estética que não oculta nem revela, não é manifestação nem essência e antes não é senão superfície. Nietzsche prossegue a purificação romântica do fenómeno estético de todos os aditivos teóricos e morais. Na experiência estética a efectividade dionisíaca é compartimentada e isolada através de um «abismo de esquecimento» contra o mundo do conhecimento teórico e do agir moral, contra o quotidiano. A arte não dá acesso ao dionisíaco senão à custa do êxtase-à custa da des-diferenciação dolorosa, da demarcação do indivíduo, da fusão com a natureza amorfa, interior e exterior.» Habermas, Discurso Filosófico da Modernidade.

sábado, 12 de abril de 2008

A Critica de Nietzsche à Modernidade?

«Com o ingresso de Nietzsche no discurso da modernidade, a argumentação altera-se pela base.Inicialmente a razão fora concebida como autoconhecimento conciliador, depois como apropriação libertadora e, finalmente, como recordação compensatória, para que pudesse aparecer como equivalente do poder unificador da religião e superar as bipartições da modernidade a partir das suas próprias forças motrizes. Fracassou por três vezes esta tentativa de talhar o conceito de razão à medida do programa de um iluminismo em si mesmo dialéctico. Nesta constelação, Nietzsche só tem uma alternativa: ou submete mais uma vez a razão centrada no sujeito a uma crítica imanente-ou abandona o programa na sua globalidade. Nietzsche opta pela segunda via-renuncia a uma nova revisão do conceito de razão e destitui a dialéctica do iluminismo. A deformação historicista da consciência moderna, a inundação com conteúdos de toda a espécie e o esvaziamento de tudo quanto é essencial são os principais factores que o levam a duvidar que a modernidade possa ainda criar os seus padrões a partir de si própria-« porque nós, os modernos, nada temos que venha de nós mesmos, absolutamente nada» . É certo que Nietzsche aplica mais uma vez a figura de pensamento da dialéctica do iluminismo ao iluminismo historicista, só que agora com o objectivo de fazer rebentar o envólucro da razão da modernidade enquanto tal.

Nietzsche serve-se do escadote da razão histórica para no fim o deitar fora e assentar no mito, enquanto outro da razão: « pois a origem da formação [cultural] histórica-e a contradição, no íntimo totalmente radical, em que ela se encontra com o espírito da época moderna, de uma consciência moderna-esta origem tem, ela própria, de voltar a ser reconhecida historicamente; é a história que tem de resolver o problema da própria história: o saber tem de voltar um aguilhão contra si próprio-este triplo tem é imperativo do espírito da nossa época, caso haja nela verdadeiramente algo que seja novo, potente, original e promessa de vida.» Nietzsche está aqui evidentemente a pensar na sua Origem da Tragédia, um estudo realizado com meios histórico-filosóficos que o reconduz para aquém do mundo alexandrino e para aquém do mundo romano-cristãos, aos primórdios, ao mundo primevo da Grécia antiga onde tudo era grande, natural e humano. Nesta caminhada, os «filhos tardios» da modernidade, com o seu pensamento de antiquário, deverão transformar-se em «filhos precoces» de uma época pós-moderna-um programa que Heidegger retomará no seu Ser e Tempo. Para Nietzsche a situação de partida é clara. Por um lado, o iluminismo hisórico apenas reforça as bipartições que se tornaram palpáveis nas conquistas da modernidade; a razão emergente na forma de uma religião cultural já não ostenta força sintética capaz de renovar o poder unificador da religião tradicional. Por outro lado, a modernidade encontra barrado o caminho de regresso à restauraçãos. As mundividências religioso-metafísicas das civilizações antigas são elas próprias já produto do iluminismo, demasiado racionais, portanto, para conseguir ainda contrapor o que quer que seja ao radicalizado iluminismo da Modernidade.» Habermas, Discurso Filosófico da Modernidade.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Liberdade subjectiva e Modernidade?

«Nem Hegel nem os seus discípulos directos, à esquerda como à direita, pretenderam alguma vez pôr em causa as conquistas da modernidade-ou seja, a fonte onde a idade moderna ia buscar o seu orgulho e a sua autoconsciência. A era moderna gira primordialmente sob o signo da liberdade subjectiva. Esta realiza-se na sociedade sob a forma de um espaço de manobra garantido pelo direito privado para prossecção dos interesses próprios; no Estado enquanto participação-por princípio igual em direitos-na formação da vontade política; no foro privado, sob a forma de autonomia ética e auto-efectivação no domínio público relacionado com esta esfera privada; finalmente como processo de formação consumado através da apropriação da cultura tornada reflexiva. As figuras do espírito absoluto e do espirito objectivo assumiram também, da perspectiva do individuo, uma estrutura em que o espírito subjectivo pode emancipar-se da espontaneiade natural das formas tradicionais de vida. Neste processo, as esferas nas quais o individuo conduz a sua vida enquanto bourgeois, citoyem e homme vão-se apartando e autonomizando cada vez mais. No entanto, essas mesmas separações e autonomizações que, do ponto de vista da filosofia da história, desbravam caminho para a emancipação de dependências ancestrais, são simultaneamente experienciadas como abstracção, como alienação perante a totalidade de um contexto ético da vida. Tempos houve em que a religião foi o seu elo inviolável aposto a esta totalidade. Não foi por acaso que este elo se rompeu.

As forças religiosas de integração social entorpeceram na sequência de um processo de iluminismo que é tão pouco passível de regressão, quão pouco foi arbitrariamente engendrado. O iluminismo traz inerente a si a irreversibilidade de processos de aprendizagem fundamentais no facto de as formas de compreensão não poderem ser esquecidas a bel-prazer, mas sim e apenas reprimidas ou corrigidas por outra melhores. Por isso o iluminismo só consegue equilibrar as suas insuficiências através de um iluminismo radicalizado. Por isso Hegel e os seus discípulos têm de depositar as suas esperanças numa dialéctica do iluminismo onde a razão se valida enquanto equivalente do poder unificador da religião. Desenvolveram concepões de razão destinadas a pôr em execução um tal programa. Podemos ver como e porquê essas tentativas falharam» Habermas, Discurso Filosófico da Modernidade.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Rumo existencial?

Donde vimos? O que somos? Para onde Vamos? Pintura de P.Gaugin
Óleo sobre tela, 139x375 cm, Boston, Museum of Fine Arts



É um navio sobre a vida

e no inverso o silêncio,

onde o acto solitário

se aprofunda e torna imenso,

saboreando em cada onda

um novo alento e um frágil recomeço;

fortaleza do amor e da amizade,

na senda da felicidade,

que é o sonho da humanidade;

Projecto e cuidado pelo futuro,

onde a filosofia se bate pela liberdade,

E por derrubar o muro!...

Luís Lourenço, Poética do instante Filosófico

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Ídolos com pés de barro?

  • «Os homens póstumos, eu, por exemplo, são mais mal compreendidos do que os homens actuais; mas melhor escutados. Falando com mais propriedade: nunca chegamos a ser inteiramente compreendidos, e daí a nossa autoridade» Nietzsche

  • "Não há ídolos mais antigos, nem mais convencidos ou até mais arrogantes...nem mais vazios...isso não obsta a que tenham sido os mais acreditados» Nietzsche

  • «Quaiso, em última instância, as verdades do homem? Os seus erros irrefutáveis» Nietzsche

terça-feira, 8 de abril de 2008

Amor sem tréguas



É necessário amar

qualquer coisa, ou alguém;

o que interessa é gostar

não importa de quém.



Não importa de quém

nem importa de quê;

o que interessa é amar

mesmo o que não se vê.

Pode ser uma mulher,

uma pedra, uma flor,

uma coisa qualquer,

seja lá do que for.





Pode até nem ser nada

que em ser se concretize

coisa apenas pensada

que a sonhar se precise.




Amar por claridade,

sem dever a cumprir;

uma oportunidade

para olhar e sorrir.





Amar como o homem forte

só ele o sabe e pode-o

amar até á morte

amar até ao ódio

Que o ódio, infelizmente,

quando o clima é de horror,

é forma inteligente

de se morrer de amor.



António Gedeão, OBRA POÉTICA

segunda-feira, 7 de abril de 2008

A palavra e a comunicação.

É a palavra e a comunicação
onde a vida se refresca
na onda de uma nova inspiração;
...
a medida do Mundo na vida da palavra
onde tudo se conjuga
para abrir uma nova caminhada;
...
o jogo dos símbolos e o êxase da verdade
onde se convocam os extremos
para celebrar a liberdade;
...
A vida dos signos e o ar dos argumentos
onde se ensaiam novas virtudes
e estimulam novos pensamentos;
...
A ilusão e o auge da verdade
onde desaguam o caos e o logos
para dar vida plena à humanidade;
...
a identidade no seio da alteridade
onde se plasma todo o discurso
e a ambição na própria realidade;
...
o finito e a sede de infinitude
onde cada laço é o sonho ou a revelação
de uma inédita ousadia ou memorável virtude;
...
É símbolo e ficção, discurso e comunicação,
identidade no seio da alteridade;
Emoção e razões nos sonhos da humanidade,
colinas da finitude e da infinitude,
onde entra toda a maldade e trabalha toda a virtude;
Sonhos no grande e no pequeno,
aspirações de sabedoria onde nascem
os voos e os jardins da filosofia!

Luís Lourenço, Poética do instante Filosófico.

domingo, 6 de abril de 2008

Poema das coisas belas

As coisas belas,

as que deixam cicatrizes na memória dos homens,

por que motivo serão belas?

E belas, para quê?

põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo

Derrama cores porque os meus olhos vêem .

Mas por que será belo o pôr do Sol?

E belo, para quê?

Se acaso as coisas não são são coisas em si mesmas

mas são só coisas quando coisas percebidas,

por que direi das coisas que são belas?

E belas, para quê?

Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas

sem precisarem de ser coisas percebidas,

para quem serão belas essas coisas?

E belas, Para quê?

António Gedeâo, OBRA POÉTICA

sábado, 5 de abril de 2008

A energia e o juízo à memória.

...

É o orgulho do passado e o sopro da imaginação

que sobrevoando nas asas do futuro

trazem ao efémero presente uma inolvidável lição;

...

a necessidade e a contingência

que erram no caos do desconhecido e da ciência

até serem largas visões nos binóculos da consciência;

...

O devir múltiplo e os simulacros de ser

na memória do desgaste inexorável do tempo

até os arrancar com violência ao esquecimento;

...

Luís Lourenço, Poética do instante Filosófico.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

duas vias: a socrática e a nietzscheana?

TRILHOS DA VIDA-ESCHER



"Nestas condições, logo que a interrogação e a dúvida, substituem a autoridade, provocando a derrocada do universo aristocrático da tradição, está fora de questão reencontrar a simplicidade ingénua dos Helenos: uma vez aberto o espaço da discussão e da argumentação, a espontaneidade quase animal com que os aristocratas nativos aderiam a uma tradição que estava como que incorporada neles desaparece, e a anarquia instala-se entre os instintos que já não estão coordenados entre si como uma bela e imediata totalidade।Deixa de ser possível retroceder, para restabelecer sob a sua forma arcaica, a autoridade absoluta de uma tradição que doravante será vivida como escravatura por um tipo de humanidade na qual se desenvolve a faculdade de se interrogar e de «perguntar-se porquê»। Foi assim que surgiram , pelo menos em retrospectiva ou na aparência, duas vias:

A via socrática, e do ascetismo, devia consistir, perante a anarquia das forças instintivas em conflito, em suprimir todos os instintos submetendo-os à razão e à tirania da verdade-gesto radical consagrado pela invenção platónica do mundo inteligível, mas que consiste em mutilar certas forças( as do sensível) em nome de outras( as do inteligível). Neste sentido, a via socrática da argumentação é reactiva, porque certas forças são sacrificadas a outras e porque, ao implicar uma diminuição do quantum global de força, inaugura uma forma decadente de vida[uma forma mórbida da vontade de poder], que transparece na fealdade de Sócrates

A outra via, em que Nietzsche pensa e que constitui o seu verdadeiro ideal, teria consistido, não em mutilar umas forças em nome de outras, mas em saber hierarquizá-las. Se a dialéctica socrática é o protótipo da reacção que mutila o instintos e, portanto, do ascetismo, a feliz hierarquização dos instintos corresponde ao que Nietzsche chama « o grande estilo» e que define nos seguintes termos:« Tornar-se senhor do caos interior, forçar o seu próprio caos a tomar forma, actuar de forma lógica, simples, cataegórica, matemática, tornar-se lei»
Não insistirei mais neste tema bem conhecido, nem no parentesco entre o «grande estilo» e o clacissismo: simplesmente é claro que, aos olhos de Nietzsche, só uma hierarquização dos instintos que integre todas as forças da vida, incluindo(uma ver surgidas) as da razão e da lógica , permitiria verdadeiramente escapar à atitude «reactiva» inaugurada por Sócrates; porque, se as forças reactivas são as que não podem afirmar-se sem negar outras, uma crítica da dialéctica argumentativa e, em termos mais gerais, da racionalidade democrática, que consistisse em eliminar essa racionalidade e a força que ela representa continuaria prisioneira da atitude reactiva e, portanto, enfraquecida e geradora de fealdade. Ao invés, a hierarquização de todas as forças da vida supõe uma« vontade vitoriosa», uma« coordenação mais intensa», «uma harmonização de todos os desejos violentos», em suma, um autocontrolo que é sinónimo ao mesmo tempo, de uma intensificação da vida e do seu «embelezamento»E, de facto, é nos princípios de uma tal hierarquização harmoniosa, que obriga os instintos a estruturarem-se numa nova totalidade bem regulada, que devera esboçar-se, para uma nova aristocracia, menos espontânea, mas também menos animal que a dos »antigos Helenos», O análogo moderno( ou antes pós-moderno de uma tradição



As Críticas da Modernidade Política, Direcção de Alain Renault.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Tradição ou argumentação?

Com efeito, na leitura de Humano, Demasiado Humano, encontra-se um aforismo desconcertante (I, 552]: O único direito do homem-Quem se afasta da tradição é vítima da excepção; quem permanece na tradição é escravo dela.Em ambos os casos, é em direcção à sua perda que caminha»(...)

Está evidentemente excluída a hipótese de fundamentar qualquer interpretação num texto tão enigmático que propicia as projecções por parte do intérprete. Por outro lado, estas linhas emanam desse momento do trajecto nietzcheano( quer em Humano, Demasiado Humano quer em Aurora) em que foi provisoriamente encontrada uma certa proximidade com o espirito das Luzes, e as ideias que assim se exprimem poderiam, portanto, não implicar as teses últimas de Nietzsche sobre a alternativa que nos interessa: tradição ou argumentação? Contudo, seria imprudente não integrarmos na análise a advertência que este aforismo constitui e não retirarmos dele um estímulo no sentido de nos interrogarmos se a relação que Nietzsche mantém com o universo tradicional não será, para da saudade que esse universo lhe inspira, ainda mais complexa do que parece.

Relação complexa porquanto, de facto, Nietzsche exclui que a defesa contra a modernidade resida na vontade de produzir um retorno puro e simples a uma fase pré-moderna do destino da humanidade. Para nos covencermos disto , basta que nos reportemos, por exemplo, ao texto do Crepúsculo dos Ídolos[«Deambulações Inactuais», § 43], intitulado significativamente Para Dizer ao Ouvido dos Conservadores, pois Nietzsche adverte justamente os conservadores « de que uma regressão, um retrocesso, quaisquer que sejam o seu sentido e grau, não é de forma alguma concebível»: não podemos mais do que «progredir passo a passo rumo à decadência», isto é, permitir a realização do « progresso moderno», eventualmente dificultando essa evolução, porquanto não está em questão « transformarmo-nos em carangueijos» e andarmos«às arrecuas». Trata-se de uma posição que, no tocante ao advento da racionalidade democrática, evoca, mutatis mutandis, a de Tocqueville: independentemente do que possamos pensar sobre o que está em jogo aqui[ e Nietzsche é ainda mais severo do Tocqueville quanto ao «progresso moderno»], a verdade é que o processo é irreversível, que há «conquistas» da modernidade com as quais será necesário passar a contar. Seria possível realizar uma análise para determinar o que induz, em Nietzsche, esta representação da história como destino, cuja chave, limito-me a indicá-lo, se encontra sem dúvida num texto como este: « Como actualizo o fatalismo»: 1) pelo Eterno Retorno e a preexistência; 2) pela eliminação do conceito da Vontade.

Com clareza: 1. a doutrina do Eterno Retorno é efectivamente «a forma suprema do fatalismo», porque implica que tudo o que acontece já aconteceu um número infinito de vezes e acontecerá de novo, tal e qual uma infinidade de vezes: exclui pois a possibilidade de um «começo» radical;

2. Neste sentido, implica a « eliminação do conceito de vontade», pois a liberdade da vontade, ingrediente da mitologia inerente à ideia de «sujeito» só teria sentido como capacidade de inaugurar radicalmente uma série de acontecimentos-coisa que é interdita pelo pensamento do Eterno Retorno». Ora, evidentemente, numa perspectiva em que, como nos adverte o demónio do § 341 de A Gaia Ciência temos de aprender a aceitar « recomeçar incessantemente» o mesmo percurso « sem nada de novo», «na mesma ordem, segundo a mesma impiedosa sucessão», o projecto voluntarista de anular uma qualquer fase do devir seria destituído de qualquer sentido: se o que aconteceu voltará a acontecer, se a Grécia de antes de Sócrates, porque pertence ao nosso passado, está destinada a reinscrever-se no nosso futuro, regredir a ela não poderia depender da nossa vontade; pelo contrário será pela continuação e realização plena do que aconteceu[ no caso concreto, a racionalidade democrática dos Modernos] que se manifestarão as condições de um «recomeço». Por conseguinte, nem o «conservadorismo» stricto sensu nem o que Nietzsche designa por esse termo[ quer dizer, o espírito de «reacção» ]-animados pela vontade, um de petrificar o futuro, e o outro de o anular andando às arrecuas-compreenderam o verdadeiro sentido do presente ou do instante, ou seja, que esse presente arrasta atrás de si todas as coisas futuras» Criticas da Modernidade Política, Direcção de Alain Renault.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Margem Esquerda: Divirtam-se, divirtam-se distraidamente e depois….

Margem Esquerda: Divirtam-se, divirtam-se distraidamente e depois….

libertas-vitalis.blogspot.com: Grandes metamorfoses!

libertas-vitalis.blogspot.com: Grandes metamorfoses!

Desconfiança de Nietzsche pela dialéctica?

"É evidente que esta desconfiança relativamente à argumentação é inseparável, em Nietzsche, da contestação global da dialéctica e dos dialécticos. Limito-me a recordar, a título de indicação, a principal tese defendida em «O caso de Sócrates»: «com a dialéctica é a plebe que prevalece»(§5). Antes de Sócrates, os »antigos Helenos», no seio de uma sociedade aristocrática, recusavam os procedimentos dialécticos, convictos de que o que é grande e nobre se impõe por si mesmo sem necessidade de argumentos: em contrapartida, o que irá produzir em Sócrates e nos seus «doentes » a «hipertrofia da faculdade lógica(§4) é o projecto, característico de um «oprimido» e repleto de um «ressentimento plebeu», de se vingar dos «aristocratas»(§7), deslocando o confronto para o único terreno onde as diferenças se nivelavam, aquele em que já não é necessário afirmar simplesmente o seu direito, mas demonstrá-lo. Assim, enquanto «em toda a parte onde a autoridade ainda é de bom tom, onde não se discute, mas se ordena, o dialéctico é uma espécie de polichinelo»(§5), O «decadente» Sócrates, ao promover a dialéctica em detrimento de «todos os instintos dos antigos Helenos», sacralizava o único instrumento com o qual fora capaz de alcançar a vitória: onde vemos em acção, explica complacentemente Nietzsche, uma «preversidade de raquítico»(§4) que apunhala com a « faca do silogismo» tudo o que, até esse momento, constituía a grandeza da Grécia-- ao ponto de se tornar necessário questionar se Sócrates era verdadeiramente grego(§3).

Por outras palavras, e utilizando uma distinção central na obra nietzscheana: «dos Antigos Helenos a Sócrates», a mutação que ocorreu reside na passagem das forças activas, puramente afirmativas, capazes de ir até ao fundo de si mesmas sem mutilar outras, às forças reactivas que só podem afirmar-se opondo-se a outras e tentando negá-las. Trata-se, em ambos os casos, de formas da «vida »[porque é a vida como vontade de poder, que é força], mas enquanto as forças activas correspondem a uma forma ascendente de vida, as forças reactivas[ porque, por elas a vida só consegue afirmar-se ou, em qualquer caso conservar-se em detrimento de uma parte de si própria]inscrevem-se numa lógica de degenerescência"... As Críticas da Modernidade Política, Direcção de Alain Renault.

terça-feira, 1 de abril de 2008

A crítica nietzscheana da Modernidade?

(...)

Com efeito, quanto à sua essência ou, melhor, quanto ao seu princípio, o nietzscheanismo desenvolve-se a partir da articulação de três teses principais:

  1. Uma interpretação do ser como Vida: como é sabido, é uma constante no pensamento de Nietzsche considerar que «a Vida...é para nós a forma mais bem conhecida do ser», ou que « O ser, não temos dele outra representação além do facto de o vivermos» Vitalismo ontológico, portanto, que procede da recusa da concepção metafísica [platónica] do ser como estabilidade, permanência, imutabilidade: contra a velha cisão do ser(real) e do devir(aparente), pensar o ser como vida é conceber o real sob as ideias de mudança, de metamorfose, de pluralidade ,ou ainda, se preferirmos, apreendê-lo como histórico de uma ponta à outra.
  2. Uma interpretação da vida como vontade de poder: «Eis a minha fórmula: a Vida é Vontade de Poder» e conhece-se à proclamação de Zaratustra: « onde encontrei o vivente, encontrei vontade de poder». Consequentemente, se ser=vida e se vida=vontade de poder, então é necessário formular que a vontade de poder é« a essência mais íntima do ser», ou resumindo, que qualquer realidade é no seu âmago, vontade de poder;
  3. A interpretação da vontade de poder como vontade de adquirir sempre mais poder: se o ser, isto é a vida como vontade de poder, é essencialmente o esforço em direcção a mais poder, o real na sua integralidade resume-se a uma multiplicidade de lutas pela dominação, sendo assim atravessado por uma infinidade de relações de poder-que a fórmula que Deleuze classifica como fórmula do «profundo nietzscheanismo» de Foucault pretenderá justamente exprimir:« toda a forma é um complexo de relações de forças» Entenda-se:todas as formas que o real pode assumir são manifestações da vida como vontade de poder, como luta pelo poder e pelo seu aumento perpétuo e, por conseguinte, expressões de relações de forças.

A articulação destas três teses, tal como ela define a ontologia de Nietzsche, também é válida, como é evidente, para a realidade social-histórica: pensada por referência à ideia de Vida assim entendida, cada sociedade será um tecido de relações de forças complexas que se entrecruzam, de conflitos múltiplos que visam o poder e o seu reforço. As Críticas da Modernidade Poítica, Direcção de Alain Renault