quinta-feira, 3 de abril de 2008

Tradição ou argumentação?

Com efeito, na leitura de Humano, Demasiado Humano, encontra-se um aforismo desconcertante (I, 552]: O único direito do homem-Quem se afasta da tradição é vítima da excepção; quem permanece na tradição é escravo dela.Em ambos os casos, é em direcção à sua perda que caminha»(...)

Está evidentemente excluída a hipótese de fundamentar qualquer interpretação num texto tão enigmático que propicia as projecções por parte do intérprete. Por outro lado, estas linhas emanam desse momento do trajecto nietzcheano( quer em Humano, Demasiado Humano quer em Aurora) em que foi provisoriamente encontrada uma certa proximidade com o espirito das Luzes, e as ideias que assim se exprimem poderiam, portanto, não implicar as teses últimas de Nietzsche sobre a alternativa que nos interessa: tradição ou argumentação? Contudo, seria imprudente não integrarmos na análise a advertência que este aforismo constitui e não retirarmos dele um estímulo no sentido de nos interrogarmos se a relação que Nietzsche mantém com o universo tradicional não será, para da saudade que esse universo lhe inspira, ainda mais complexa do que parece.

Relação complexa porquanto, de facto, Nietzsche exclui que a defesa contra a modernidade resida na vontade de produzir um retorno puro e simples a uma fase pré-moderna do destino da humanidade. Para nos covencermos disto , basta que nos reportemos, por exemplo, ao texto do Crepúsculo dos Ídolos[«Deambulações Inactuais», § 43], intitulado significativamente Para Dizer ao Ouvido dos Conservadores, pois Nietzsche adverte justamente os conservadores « de que uma regressão, um retrocesso, quaisquer que sejam o seu sentido e grau, não é de forma alguma concebível»: não podemos mais do que «progredir passo a passo rumo à decadência», isto é, permitir a realização do « progresso moderno», eventualmente dificultando essa evolução, porquanto não está em questão « transformarmo-nos em carangueijos» e andarmos«às arrecuas». Trata-se de uma posição que, no tocante ao advento da racionalidade democrática, evoca, mutatis mutandis, a de Tocqueville: independentemente do que possamos pensar sobre o que está em jogo aqui[ e Nietzsche é ainda mais severo do Tocqueville quanto ao «progresso moderno»], a verdade é que o processo é irreversível, que há «conquistas» da modernidade com as quais será necesário passar a contar. Seria possível realizar uma análise para determinar o que induz, em Nietzsche, esta representação da história como destino, cuja chave, limito-me a indicá-lo, se encontra sem dúvida num texto como este: « Como actualizo o fatalismo»: 1) pelo Eterno Retorno e a preexistência; 2) pela eliminação do conceito da Vontade.

Com clareza: 1. a doutrina do Eterno Retorno é efectivamente «a forma suprema do fatalismo», porque implica que tudo o que acontece já aconteceu um número infinito de vezes e acontecerá de novo, tal e qual uma infinidade de vezes: exclui pois a possibilidade de um «começo» radical;

2. Neste sentido, implica a « eliminação do conceito de vontade», pois a liberdade da vontade, ingrediente da mitologia inerente à ideia de «sujeito» só teria sentido como capacidade de inaugurar radicalmente uma série de acontecimentos-coisa que é interdita pelo pensamento do Eterno Retorno». Ora, evidentemente, numa perspectiva em que, como nos adverte o demónio do § 341 de A Gaia Ciência temos de aprender a aceitar « recomeçar incessantemente» o mesmo percurso « sem nada de novo», «na mesma ordem, segundo a mesma impiedosa sucessão», o projecto voluntarista de anular uma qualquer fase do devir seria destituído de qualquer sentido: se o que aconteceu voltará a acontecer, se a Grécia de antes de Sócrates, porque pertence ao nosso passado, está destinada a reinscrever-se no nosso futuro, regredir a ela não poderia depender da nossa vontade; pelo contrário será pela continuação e realização plena do que aconteceu[ no caso concreto, a racionalidade democrática dos Modernos] que se manifestarão as condições de um «recomeço». Por conseguinte, nem o «conservadorismo» stricto sensu nem o que Nietzsche designa por esse termo[ quer dizer, o espírito de «reacção» ]-animados pela vontade, um de petrificar o futuro, e o outro de o anular andando às arrecuas-compreenderam o verdadeiro sentido do presente ou do instante, ou seja, que esse presente arrasta atrás de si todas as coisas futuras» Criticas da Modernidade Política, Direcção de Alain Renault.

Sem comentários: