domingo, 11 de maio de 2008

Enquanto


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio

e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé

para ver como é;

enquanto o sangue gorgulejar das artérias abertas

e correr pelos interstícios das pedras,

pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;

enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,

orfãs de pais e de mães,

andarem acossadas pelas ruas

como matilhas de cães;

enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto

com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,

num silêncio de espanto

rasgado pelo grito da sereia estridente;

enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio

cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas

amassando na mesma lama de extermínio

os ossos dos homens e as traves das suas casas;

enquanto tudo isto acontecer, e o mais que não se pode dizer por ser verdade,

enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,

o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA


António Gedeão, OBRA POÉTICA

5 comentários:

Graça Pires disse...

Gostei de ler aqui este magnífico poema de poeta Gedeão.
Um abraço.

un dress disse...

muito muito a propósito

das últimas

reflexões...minhas:

o valor tão relativo

e no entanto,

tão incontornável, das

palavras...





beijO

luis lourenço disse...

A força projectiva das palavras quando se converte através do seu poder redentor numa transformação verdadeira da própria realidade!

beijinho

Olinda disse...

Fantástico e intemporal. :-)

luis lourenço disse...

A perfeição artística muito inspirada mas violenta pela reflexão profunda que implica!

beijinho