Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgulejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
orfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que não se pode dizer por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA
António Gedeão, OBRA POÉTICA
5 comentários:
Gostei de ler aqui este magnífico poema de poeta Gedeão.
Um abraço.
muito muito a propósito
das últimas
reflexões...minhas:
o valor tão relativo
e no entanto,
tão incontornável, das
palavras...
beijO
A força projectiva das palavras quando se converte através do seu poder redentor numa transformação verdadeira da própria realidade!
beijinho
Fantástico e intemporal. :-)
A perfeição artística muito inspirada mas violenta pela reflexão profunda que implica!
beijinho
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