O CICERONE_RENÉ MAGRITTE
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O niilismo, enquanto estado psicológico, manifestar-se-á logo que tenhamos procurado nos factos um sentido-que eles não possuem. isso desanimará por completo quem procura esse sentido. O niilismo consiste então num prolongado desgaste de forças, na tortura de se ter actuado em vão, na insegurança, na impossibilidade de refazer forças, de obter um pouco de tranquilidade; na íntima vergonha de demasiado tempo se persistir num engano.
O sentido da vida poderia consistir em descortinar, através do devir a formação de um cánone moral elevado, a ordem moral do universo; ou ao menos um aumento de amor e harmonia entre os seres, ou a aproximação de um estado de felicidade universal; ou então o elã para um nada universal-qualquer que fosse o fim ele significaria um sentido.
Estas e outras que tais concepções têm como traço comum um processo que propende a um fim; entretanto compreende-se actualmente que o devir não propende a nada, não alcança nada. A decepção acerca dum pretenso fim do devir é portanto uma das causas do niilismo; quer se trate da ausência de um fim definido ou, genericamente, da insuficiência de todas as hipóteses finalistas relativas ao conjunto da evolução, o homem em nada influi no devir, e menos ainda é o centro dele.
O niilismo psicológico manifesta-se a seguir, quando é suposta uma totalidade, uma sistematização-ou melhor uma organização-no interior dos factos e entre todos os factos. Não obstante, uma alma que esteja repleta de admiração e de veneração, delicia-se em imaginar uma forma suprema de domínio e de organização; tratando-se da alma de um homem lógico, bastar-lhe- á a consequência absoluta e a dialéctica precisa para que tudo se concilie imaginando um jeito de unidade, uma qualquer forma de monismo, em consequência de uma crença dessas, o homem é tomado por um sentimento profundo de correlação e de dependência perante um todo que o ultrapassa e em que ele é uma simples manifestação da divindade..." o bem geral exige o devotamento do indivíduo"...mas esse geral não existe!
No fundo o homem perdeu a fé no seu próprio valor, ao não admitir que é por meio dele que uma colectividade preciosa actua. Ele imaginou então essa colectividade, para poder acreditar no seu próprio valor.
O niilismo psicológico apresenta ainda uma última forma.Uma vez admitidos os dois aspectos citados-o de que o devir não tem um fim, e o de que não é dirigido por por qualquer grande unidade, em que o individuo possa mergulhar completamente, como num elemento de supremo valor-deixa apenas uma saída possível: condenar este mundo do devir. como sendo ilusório e inventar um mundo situado no além, o qual seria o mundo verdadeiro. Mas logo que o homem descobre que esse mundo é construído em função das suas próprias necessidades psicológicas e que não é de modo algum de molde a ser credível, começa a destacar-se a última forma de niilismo: a qual implica a negação do mundo metafísico e a recusa em acreditar num mundo verdadeiro.Atingindo nós este último estádio, a realidade do devir aparece-nos como a única realidade, e todos os caminhos contornantes dela-ou conducentes à crença noutros mundos e em falsos deuses, se tornam tão insuportáveis que já nem apetece negá-los.
Que terá acontecido então? Que chegamos ao sentimento do não-valor da existência, por compreendermos que ela não pode ser interpretada em conjunto-nem com a ajuda do conceito de fim, nem com a do conceito de unidade, nem com a do conceito de verdade. Não chegamos a nada, não atingimos nada: falta a unidade global, na pluralidade do devir; o carácter da existência não está em ser verdadeira mas em ser falsa; não há qualquer razão para nos persuadirmos que existe um mundo verdadeiro.
Em suma: as catgorias fim, unidade, verdade-mercê das quais tem sido atribuído um valor ao mundo-são suprimidas e o mundo parece ter perdido todo o valor.
Admitindo que tenhamos, a qualquer título, reconhecido o mundo como inexplicável por meio dessas mesmas três categorias e que, após uma tal constatação, ele começa a perder para nós todo o valor, sentimo-nos obrigados a perguntar a nós próprios donde vem a nossa crença nessas três categorias, e procuramos saber se não é possível doravante rejeitar a nossa crença.
Pelo facto de chegarmos a depreciar essas três categorias, como inaplicáveis ao universo, isso não será motivo para depreciarmos o universo.O que resulta sim, é que a crença nas categorias da razão é a causa do niilismo, pois que temos achado a medida do valor do mundo a partir de categorias aplicáveis somente a um mundo puramente fictício.
como resultado final: todos os valores em que nos temos apoiado até agora para tentarmos atribuir valor ao mundo-e que apenas conseguiram rebaixar-lhe o preço-todos esses valores são, debaixo do ponto de vista psicológico, o resultado de certas perspectivas, bem definidas, de utilidade, destinadas a manter e a fortificar certas formas de domínio humano, errradamente projectadas na essência das coisas. Mais uma vez estamos perante a ingenuidade hiperbólica do Homem-que se toma pelo sentido e pela medida das coisas. Nietzsche-A vontade de Poder-vol I-O niilismo europeu, RES Editora
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